Rio quarenta caos

Olha, o Rio é muito massa. Nem sei por que demorei tanto tempo para ir. Agora se alguém perguntar “São Paulo ou Rio?”, direi sem pestanejar: “Rio, óbvio”. A cidade tem uma lógica fora do logos, muitas peculiaridades. É um caos bonito de ser ver e presenciar e participar. Os moradores sentem-se como turistas. Inclusive dei informações para um fluminense no metrô. E os vi tão empolgados com Paquetá quanto um forasteiro. Sei lá, parece que eles não são a cidade, mas estão ali temporariamente em volta de uma entidade, a própria cidade. Quem vai pela primeira vez, como eu, sente-se meio que levado por um fluxo fora da realidade, meio sonho, meio delírio.

O estereótipo do carioca arrogante tem pouco a ver. São em geral acolhedores, também por conta de sua condição de turistas em sua própria terra. São “para frente”, isso é verdade. São abertos ao diálogo. Tivemos alguns. Dois diálogos e dois episódios me chamaram atenção. Vou começar pelo meio.

Primeiro episódio. Ficamos alguns dias no morro do Leme, na favela da Babilônia. Na saída, pela manhãzinha, vi uma expedição eco-antropo-zoológica pela favela. Pessoas com uniformes semelhantes a abadás de fest folia caminhavam orientadas por dois guias, iam passeando pelas centenas de degraus da favela, registrando em imagens sua segunda experiência mais próxima com a pobreza (a primeira foi a leitura de “Vida Secas” de Graciliano), olhando com curiosidade e receio para os lados, estupefatas como quem passa diante de uma savana africana, aparentavam ser ricas ou de classe média alta (com essa crise danada, sacomé?!). Nós, mochileiros, estávamos ali na fronteira, no umbral, nem no lado dos expedicionários (no mineirês: aqueles que pedem dicionários), nem no dos leões (digo, moradores). Ali o primeiro mundo atravessava o último, e dificilmente enxergando algum “comum”.

Primeiro diálogo. Com uma senhora na orla de Ipanema. Uma trabalhadora de um dos banheiros pagos do calçadão. Contou que recebia 900,00/mês para ralar 8h/dia incluindo feriado e finais de semana. 900 pilas até dá pra fazer alguma coisa em Udia, mas num lugar onde uma coca-cola custa 10 reais? Pois é. No Rio você descobre que existe um mundo muito melhor, só que é muito mais caro. Ela então relatou que era pior quando trabalhava numa rede de supermercados ali perto, na zona sul. Recebia menos e sofria constante assédio moral. Os donos ricaços e os gerentes humilhavam os funcionários, que se digladiavam entre si. Contou das comidas estragadas que eles vendiam, que os funcionários tinham de comer e da qual os donos também se alimentavam. Não raras vezes todos passavam mal. O Rio finalmente ia me trazendo de volta à realidade que ele mesmo havia me tirado. De repente era um lugar igualzinho aos outros do Brasil que conheço.

Segundo diálogo. Com um senhor de 86 anos em Paquetá. Morrendo de fome pedi informações sobre um restaurante bom e barato (leia-se menos caro, afinal, os maiores roubos são dentro da lei). Ele não sabia bem. Mandou-me caminhar para algum rumo mas depois perguntou se eu era carioca e de onde eu vinha. “De Uberlândia”. Me pediu 1 minuto. Gastou 20. Contou como se tornou kardecista depois de ser cantor de uma igreja batista. O que tinha a ver com Uberlândia? Era perto de Uberaba, onde morou Chico Xavier (que era viado e o Roberto Carlos tem perna de pau, pau). Dizia não querer saber do meu credo - como a negativa de Freud. Ok. Pouco falei, a fome era grande. Perguntou o que eu fazia. “Professor de história”. Eu sabia que essa resposta seria a derrocada do meu almoço antes das 15h30. Dito e feito. Me pediu +5min. Gastou meia hora contando que era advogado do exército e foi contra a “Revolução de 64”. Era também sobrinho-neto de Castro Alves, por isso, antirracista. Comemorei. E neto de um general herói da Guerra do Paraguai. Por fim disse que, segundo Kardec, o espírita não pode ser personalista, mas me entregou um cartão com seu nome. “Lembre-se de mim”, finalizou.

Segundo episódio. Na volta de Paquetá à praça XV, já de noitinha, um trompetista de terno se dirige à proa da barca e começa um concerto improvisado e desajeitado, mas bonito, na bela embora suja Baía da Guanabara. O Rio me levou de volta a seu delírio, ao topos fora do chronos.

Por estas e outras que pretendo retornar. ❤

..................
26 jul. 2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário