Subindo a Serra da Canastra (Cachoeira Casca D'anta & Cânions de Furnas)

Vamos lá! Vou tentar passar neste post algumas informações utéis para quem está pensando em se aventurar pela primeira vez na Serra da Canastra. Descreverei um roteiro sobre dois lugares que visitei recentemente na companhia da Ana (mon petite amie) e, no último trecho, com alguns amigos, entre eles meu primo João, companheiro de estrada e praias no sul da Bahia. Mas antes de iniciar, saliento algo importante: este é apenas um dos caminhos possíveis com acesso a algumas cidades e cachoeiras, existem outros. A Serra da Canastra é gigantesca, por volta de 200 mil hectares (1 hectare corresponde a 100 mil metros quadrados). Há mais ou menos uma centena de cachoeiras e cascatas (não estou exagerando).

Ana e a lendária cachoeira


Ato 1
Rumo à Cachoeira Casca D’anta

De Uberaba-MG à São Roque de Minas. Saímos cedinho de Uberaba e a ideia era trafegar pela parte norte da Serra. Rodamos pela BR 262, rodovia boa, porém pista simples de mão dupla e cheia de caminhões. É preciso ter paciência nas curvas. A primeira cidade é Araxá (120 km de Uberaba), mas nem chegamos a adentrá-la; é possível passar por fora da cidade, contornando-a. A algumas dezenas de quilômetros de Araxá você continua seguindo na mesma rodovia até o Posto Java e, em menos de 3km depois, vira-se à direita para a LMG 827. Estrada pavimentada estreita e muito arborizada, felizmente vazia. Os morros são muitos. Tem-se a impressão de que você já está no meio da serra. Até à cidade de Pratinha (é uma microcidade, hein) viajamos 25km em asfalto, estreito, mas asfalto, depois disso, truta, é só terra. Isso o pessoal da cidadezinha fez questão de nos informar. São 40km até o próximo município, Medeiros. Ok que a estrada possuía boas condições de rodagem, contudo estávamos a bordo de um Uno Mille. Não sei se sabem, mas esse carro é mais potente do que uma Ferrari e sobretudo em estrada de terra. Melhor ainda se tiver uma escada em cima e um adesivo da firma colado na porta, bom, aí vira um Avião Mirage.

Nos perdemos um pouco no caminho porque vão aparecendo muitas vias e você acaba ficando confuso qual delas é a maior. Dois entregadores de leite em um caminhão-baú nos ajudaram quando pedimos informações enquanto rodávamos ouvindo um rock rural na estrada errada. Eles estavam com destino a felicidade, não péra, digo, justamente a Medeiros (de onde era a placa do caminhão). Enfim, Medeiros-MG é outra microcidade. É em seus arredores que se localiza a nascente geográfica e real do monstruoso Rio São Francisco – que vai cortar parte da Serra da Canastra, adentrar a Bahia e desaguar lá na divisa entre Sergipe e Alagoas. Estamos chegando? Calma aí, ô burrinho do Shrek. Tem chão ainda! De Medeiros a São Roque de Minas, são mais 60km em estrada de terra, entretanto, num trechinho final ela torna-se asfáltica. Chegamos na hora do almoço em São Roque e as lombrigas já lutavam MMA a essa altura do campeonato, os parcos biscoitos que levamos não deram nem para o cheiro. Mas antes mesmo de chegar a São Roque você avista de longe uma cachoeira até grandinha da pista, é a Cachoeira do Cerradão (nessa não fomos). Ao adentrarmos a cidade um morador nos convenceu a ir a um certo restaurante. Nos demos mal. Não era amor, era... cilada, cilada, cilada. Comida relativamente cara e bem ruinzinha. Já a cidade tem lá seu charme, igrejas e casarões antigos sobre uma topografia de morro (ideal para a prática de quebrar os dentes numa bicicleta sem freio). A área do município cobre parte da Serra da Canastra.

Energias renovadas e lombrigas pacificadas, é hora de pegar a estrada até Vargem Bonita: um distrito de São Roque que nos dará acesso à cachoeira tão sonhada. Aqui neste trecho você pode escolher. Opção um: 13km de São Roque a Vargem Bonita pela estrada de terra. A outra opção é rodar 23km em rodovia asfaltada. Optamos pelo último. Depois mais 22km de Vargem Bonita até a entrada da Cachoeira Casca D’anta. E dá-lhe terra! Mas desta vez o caminho possuía umas partes mais complicadas de atravessar. Um carro com chassi baixo por exemplo teria ficado encalhado. O recomendável é com tração 4x4, mas avistamos, além do Uno diabólico e jipes e camionetes, outros carros populares trafegando por lá. Nestes 22km você nota na estrada vários outros lugares para acampar, pousadas, entradas para outras cachoeiras menores, vendas do famoso queijo canastra e de cafés produzidos na região (na volta paramos em um lugar destes e experimentamos e compramos um queijo e um pacote de café). Também é possível observar e se encantar com a parte mais famosa da serra, o desenho das chapadas naquele ponto assemelha-se a uma caixa ou baú, talvez venha daí o nome “canastra”.    

Finalmente chegamos! Havia muitos carros no estacionamento improvisado pela guarita do Parque Nacional da Serra da Canastra, que controla a entrada cobrando 10,00 reais de cada pessoa pelo acesso à trilha da cachoeira. São uns cinco minutos de caminhada leve até a queda, mas a gente acabou parando várias vezes para tirar fotos. E essa parte é muito curiosa porque a cada vinte passos as pessoas vão ficando paulatinamente maravilhadas com a imponência da cachoeira e seguem se surpreendendo até o desfecho final. O curso da água percorre mansamente por algumas piscininhas naturais cercadas pelas rochas, ali onde alguns turistas resolvem tomar um banho desde já porque o calor é intenso e você está suando em bicas. A trilha é coberta por uma mata e te protege do sol até às pedras que cercam o poço principal, produzido pela forte queda d’água. Ao chegar e se deparar com a magnitude arrebatadora da cachoeira, fica-se paralisado por alguns instantes e vem aquela sensação de que você é somente uma formiguinha no mundo, ou melhor, você é um “cachorrinho de estimação” da formiguinha, ou, para ser mais preciso, apenas uma “pulga do cachorrinho de estimação” da formiguinha. Creio que foi a segunda vez que me veio esta sensação à mente quando diante de um colosso da natureza (a primeira foi ao lado do Pão de Açúcar no Rio de Janeiro, ali na Praia Vermelha). A Cachoeira Casca D’anta tem este nome devido a árvores com princípios medicinais da região e nas quais as antas se coçavam para curar de enfermidades. A natureza é realmente uma coisa espetacular. São 186 metros de queda livre. É a maior cachoeira da Serra da Canastra, a quinta maior do Brasil, mais alta do que um prédio de 50 andares. A torrente de água jorra de um vão dos chapadões da serra, como se estivesse rasgando-a no meio, e cai provocando um som que dá para ouvir de longe e uma profundidade inimaginável no poço de águas escuras e geladas. O volume de água é tamanho e a força tão grande que respingos te acertam a longa distância nas pedras, formando-se um lindo arco-íris. Para tornar tudo ainda mais mágico, estas são as águas do Rio São Francisco. Não muito longe dali está localizada a nascente histórica deste rio, navegado pela primeira vez, em 1501, por Américo Vespúcio* – o célebre mercador e navegador florentino cujo nome do continente em que vivemos o homenageia.

Eu e a Casca D'anta

Ato 2
Cânions de Furnas

Saímos da Casca D’anta e seguimos em direção a São José da Barra-MG, pequena cidade próxima à qual a família de Ana tem um rancho, localizado às margens de um braço do Rio Grande. Sem contar a serra, os lugares ali em volta tornaram-se pontos turísticos por causa da formação do lago da Usina Hidrelétrica de Furnas, obra histórica do governo Juscelino Kubitschek entre fins dos anos 50 e início da década de 60. Nos arredores do Rio Grande existia um vilarejo conhecido como Velha Barra. Este foi completamente submerso quando as compotas da usina foram fechadas pela primeira vez, após sua inauguração, ocorrida em 1963. Por isso construiu-se uma nova cidade: São José da Barra, apelidada então de Nova Barra. A poucos quilômetros dali, durante a construção da hidrelétrica, ergueu-se uma vila mais próxima à usina a fim de servir como moradia para os funcionários da empresa: trata-se do distrito de Furnas-MG.

Dois dias depois de chegar da aventura na cachoeira, acompanhados por amigos (Deivid, Morgado, Taís e meu primo João) que vieram de Goiânia para passar o réveillon com a gente, fomos aos Cânions de Furnas. Diferente da Casca D’anta, o acesso é rápido, fácil e grátis, basta seguir pela MG 050 de Furnas com destino a Capitólio (outra cidadezinha no pé da serra). Se quiser fazer outro roteiro, na direção oposta você poderá localizar a Cachoeira da Filó e, depois de um curto caminho de terra à direita, a Cachoeira do Paraíso Perdido. Os Cânions de Furnas têm se tornado um ponto turístico bastante procurado ultimamente e não é por menos, o visual do lugar é realmente paradisíaco. Não tenho total certeza, mas é muito provável que o volume e o curso de água ali presentes não são completamente naturais, tratando-se de uma consequência da criação da usina. Inclusive os cânions, cortes de rochas do minério quartzito foram provocados em alguns pontos pela erosão e em outros (como na estação hidrelétrica) por bombas de dinamite. De todo modo, os cânions compõem um cenário digno de Hollywood. As pessoas estacionam os carros (e havia inúmeros neste dia) em acostamentos da rodovia, caminham por um trieiro curto e em breve estão à beira de um precipício espetacular. Do alto observa-se a movimentação de lanchas e jet-skis rasgando o verde azulado das águas do lago de Furnas.

Eu e minha fantasia de turista nos Cânions de Furnas

Após contemplarmos a vista do alto, caminhamos novamente rumo à pista, descemos por um conjunto de pedras entre as quais desfila um córrego raso a partir do qual formam-se inúmeras cascatas, poços e pequenas quedas d’água até descer por uma cachoeira e se lançar ao lago. Os moradores conhecem o lugar como Cascatinha e isso faz algum sentido se levarmos em consideração as formações rochosas que ali são encontradas, ora cascatas menores, ora degraus que parecem ter sido esculpidos por um artista talentoso. No entanto encontrei outras fontes intitulando o lugar como Cachoeira Diquadinha. Pouco importa. No mesmo complexo (se assim o pudermos chamar), sob a rodovia encontra-se uma canaleta fluvial em que passa a água da chuva e também de onde origina-se o córrego anteriormente descrito. Atravessamos este canal que, aliás, judiou bastante de nossos pés pois foi construído à base de concreto grosso e britas. Do outro lado, você descobre mais e mais formações rochosas e poços semelhantes aos que tínhamos visto e que parecem se estenderem ao infinito. No dia em que fomos havia bastante gente. Famílias, crianças, idosos, pessoas fazendo churrasco, pessoas se dependurando numa corda amarrada a árvores e brincando de Tarzan em cima das piscinas mais fundas. Voltamos exaustos mas felizes pelo que vimos e vivenciamos.

Estivemos em outros locais, mas nada comparado a estes dois que descrevi. Serra da Canastra, até a próxima!

Ana, Deivid, Morgado e Taís na Cascatinha.

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* Foi também Américo Vespúcio quem batizou o rio, uma homenagem a São Francisco de Assis. Ao navegar até à Cachoeira Casca D’anta, a expedição europeia de 1501-1502 concluiu que a nascente do rio era ali mesmo, na Serra da Canastra, mais precisamente no município de São Roque de Minas (por isso chamada de “nascente histórica”). Até pouco tempo atrás todos pensavam assim, entretanto estudos mais recentes demonstraram que a “nascente geográfica” está localizada em Medeiros-MG, aonde corre sob o nome de Rio Samburá até desaguar num ponto e transformar-se de vez em Rio São Francisco.

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18 de jan. 2017 

Porto Alegre mas nem sempre

Porto Alegre não me encantou. Se bem que, embora esperasse mais, a expectativa não era alta. E isso não quer dizer que a cidade não seja boa. Vou compartilhar aqui minhas impressões. É uma mini São Paulo, aquela correria louca de metrópole que mistura modernidade a prédios antigos ali mesmo no centrão da cidade. A personalidade do porto-alegrense, no entanto, é carioco-paulista: algo entre o profissionalismo frio do paulistano, a pressa e a impaciência, e a falta de interdição social (para alguns, desinibição extrema) do carioca, sempre preparado para arrumar um barraco caso seja preciso. Esta condição me surpreendeu. Vi e fui participante passivo de pelo menos um (quando, ao perguntar se havia nota fiscal, testei o espírito de um daqueles vendedores ambulantes de celulares com “origem duvidosa”). E a tal da civilidade vinda da colonização europeia de que alguns se orgulham? Não vi nada disso. Brasileiríssimos. Macunaíma também é gaúcho, pelo menos em alguns traços.

Passou-se quase um mês que voltei desta viagem. Devido ao lugar não ter me instigado tanto como Rio e Bahia quase não escrevi a respeito. Vou tentar remontar o percurso.

Fomos para realizar uma prova de concurso. Sabíamos da chance escassa de passar e por esta razão resolvemos chegar uns dias antes para conhecer a cidade. Assim que chegamos recebemos um presente da companhia aérea (Azul): malas extraviadas. Minha previsão sinistra se confirmara. Voo com três escalas, é matemática, se atrasar um pouquinho a mala fica. De Uberaba a Campinas, de Campinas a Curitiba, de Curitiba a Porto Alegre. Em Curitiba aterrissamos em cima da hora, nos sentimos em um filme de ação ao sair do avião escoltados por um afobado comissário do aeroporto que levava a nós e um gringo com roupa de gringo até o voo com destino a POA. O tal comissário estava mais perdido do que nós. “Number?”, correndo que nem Forrest Gump o gringo perguntou o número do portão. “Thirt.... é... é... no, fourteen!”, respondeu o funcionário parando no caminho e depois correndo mais do que todos ao lembrar que ele mesmo é quem deveria validar nossas entradas no tal Gate 14. Nossa chegada foi antes do anoitecer mas as malas só apareceram umas duas horas da madrugada (e isso depois de muitas ligações efusivas de Ana: ma petite amie e companheira de saga). A região do hotel em que ficamos inicialmente era suja e poluída visualmente. Calor. Poucos pedestres. Parecia um bairro industrial apesar de não ser. O hotel tinha naipe de motel (aliás todas as pistas levavam a crer que também funcionavam como tal) e o que salvou foi o atendimento cordial do recepcionista (o Indião) e sua indicação de uma lanchonete boa e barata para nos alimentar. Primeiros impactos: os nomes das comidas e o sotaque. Primeira conclusão: gaúcho adoooora carne. Lembrei e compartilhei trechos da história da pecuária brasileira no contexto sulista. Longa duração, diria Braudel.

No dia seguinte mudamos para outro hotel da mesma rede, porém mais perto do centro. Este não parecia motel e tinha melhor estrutura. Antes do almoço demos um rolê no chamado centro histórico. A avenida de acesso, chamada Voluntários da Pátria, lembrava alguma coisa da famosa 25 de Março. Uma babilônia em versão mais modesta do que a paulista, óbvio. Comércio pulsante. Avistamos uma feirinha de artesanato e entramos no histórico Mercado Público. Estranhas frutas e verduras, gente oferecendo almoço, gente usando roupas esquisitas, uma feira de especiarias. O objetivo era encontrar o escondido Museu Militar e no fim acabamos conhecendo o Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Havia uma exposição interessante de uma artista da terra, Zoraia Berthiol e outras nem tanto.

Outro museu que visitamos, depois de muito rodar em ônibus e a pé, foi o de Ciências e Tecnologia da PUC-RS. Foi bastante divertido o passeio e compensou o ingresso, apesar da fome e dos estresses em caminhos errados sobretudo devido às informações imprecisas que os gaúchos nos davam (com raras exceções, são péssimos neste quesito). Havia interatividade e uma infinidade de objetos de variadas áreas do conhecimento ali no museu. Corrida, teste de força, de equilíbrio, de memória, show de eletricidade e até um simulador de gravidade zero. Voltamos à infância.


Além dos museus, há alguns bons parques em Porto Alegre. Fomos em dois. No mesmo dia do Museu de Ciências, mesmo cansados, visitamos o Jardim Botânico, que era relativamente perto dali. Lugar bonito porém necessita de mais cuidado. O público inclusive estava estressando os animais ao pegá-los nos braços, cisnes e jabutis que ali viviam (alertou minha bióloga particular ali do lado). Deste local eu esperava muito mais organização e atrações por conta da expectativa gerada após a visita que fiz ao Jd. Botânico do Rio. Tratou-se no fim de um simples parque mesmo, onde as famílias gaúchas vão fazer piquenique, deitar na grama e nada mais que isso. No último dia, num baita domingo também de sol e calor, demos um rolê de bike dentro do Parque Farroupinha, no bairro da Redenção. O nome veio a calhar. Realmente nos redimiu do tédio que havia contaminado este domingo insosso e esvaziado do centro de POA (sequer encontramos restaurantes abertos e tivemos que almoçar no shopping, também vazio). O Parque da Redenção é bem bonito e gigantesco e sem as bicicletas teríamos cansado em menos da metade do caminho. Havia muitas pessoas ali. Correndo. Caminhando. Comendo pipoca e dando risada. Conversando. Namorando. Enfim. Socializando.

Não é de todo irrelevante dizer que Porto Alegre não é só a beleza dos parques e a riqueza dos museus. O segundo hotel situava-se ao lado de um viaduto de onde podíamos ver, à noite, bastante movimentação de coletores de materiais recicláveis e pessoas em situação de rua. Há inúmeros pedintes por toda a volta. Gente dormindo em caixas de papelão, vivendo de subempregos e vendendo bugigangas nas ruas. Nesta situação notei uma preponderância de descendentes de indígenas, imigrantes hispano-americanos (talvez peruanos, bolivianos ou equatorianos) e africanos. Os porto-alegrenses negros e mestiços foram os que nos trataram melhor quando pedíamos informações ou comprávamos algo. Eram mais cordiais e pacientes. Em função do Grêmio ter se sagrado campeão a poucos dias, parecia que só havia gremistas na cidade, sobretudo comemorando a queda do rival. Pouquíssimos colorados. Coincidentemente um mendigo dormia na calçada e sob o sol escaldante vestindo a camiseta do Internacional.

Para fechar o relato, o que mais me surpreendeu em Porto Alegre foi um bairro boêmio com nome de Cidade Baixa. Me avisaram que ali existia uma rua considerada das mais belas do mundo, arborizada, calçada de pedras, onde as copas das árvores se encontravam. Não achei lá essas coisas. Contudo o movimento do bairro à noite me deixou embasbacado. Intenso, barulhento, efervescente, um carnaval underground. Mais ou menos umas quatro ruas lotadas de gente jovem. Circulamos, desnorteados e maravilhados (ao menos eu). O rock comendo solto em pubs e boates. Uma galerinha alternativa. Hippies, indies, punks, roquistas, estudantes universitários... em alguns lugares pagava-se caro para entrar. Mas também tinha aquelas turminhas que ficavam na calçada bebendo e trocando ideia. Surpreendeu-me igualmente uma espécie de rave-pub LGBT, moçada sem camisa e besuntada de glitter. Esse caos me lembrou em alguma medida as festas de república em Ouro Preto/Mariana numa proporção homérica. Entramos num destes pubs. Um calor. Só o ar condicionado para nos remeter ao imaginário clima do sul. Os preços não eram nada convidativos mas a banda fazia ótimos coveres. Valeu pela experiência.


Agora posso dizer que visitei pelo menos um lugar das cinco regiões do Brasil. Até a próxima.

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06 jan. 2017

Bahia sem salvador

O que é que a Bahia tem? Ôche, meu rei, são tantas coisas que nem o textão que vou escrever abaixo (para matar as saudades) seria capaz de dar conta. Mas vale a pena tentar para, além de dar dicas a quem pretende se aventurar por aquelas bandas, também cumprir com a parte final de uma viagem e aquilo que lhe eterniza, isto é, compartilhá-la.

Então primeiro as utilidades.

Percorremos 1500 km de Goiânia a Ilhéus, atravessando o nordeste goiano e o centro-sul-leste baiano. Gastamos entre 21h e 22h de viagem sem parada para dormir. Compensa viajar de carro? Se te interessa economizar grana, conhecer paisagens antes vistas só pela TV (como a usina eólica de Caetité que por um momento pensei ser a Nave-Mãe dos aliens tentando contatos de 4º grau) ou imaginadas pelos livros de Guimarães Rosa (embora os bois do Grande Sertão não conversem, uma pena!) e vivenciar episódios inusitados (como o chupa-cabras que correu em frente ao carro às 2h da madrugada em plena serra da caatinga), então, compensa, sim. Vai na fé. Agora se você não quer se cansar e chegar rápido ao destino final sem ouvir todos os álbuns do Trio Parada Dura (meu tio curte) ou do É o Tchan (meu primo curte), vá de avião, jovem gafanhoto! Mas compre com antecedência ou pensará estar pagando passagem para Madagascar.

Em torno de dez cidades compõem a chamada Costa do Cacau. Passamos por pelo menos sete delas e fomos em praias de umas cinco: Ilhéus, Olivença, Uruçuca, Serra Grande (essa só o mirante) e Itacaré. Dessas aí, Ilhéus, a maior delas e onde ficamos, é a que tem as praias menos bonitas e limpas (exceto pela Praia das Conchas, uma formosura que para ser perfeita precisava apenas retirar as barracas, as latinhas e as gentes). Entre as três primeiras cidades citadas, recomendo para quem gosta de gente, movimento e virote ir às praias do sul, onde ficam as Praias dos Milionários, de Back Door, de Batuba e etc.; já para quem gosta de substituir pessoas por areias brancas, silêncio e conchas, vá às praias do norte, como as de São Domingos e Mamoã. A praia mais massa dessa tríade é a de Cururupe. Pois, apesar de ser a mais cheia de seres humanos e músicas do Psirico, é onde acontece um encontro de águas doce e salgada [que no fim fica tudo salgada, como bom goiano, eu experimentei 😉 ]. Um braço do Rio Cachoeira passa ao ladinho do mar formando uma espécie de banco de areia e vai raleando aos poucos até chegar ao Atlântico. Dentro do rio você vê a praia e logo depois dela, o oceano. É bem biurifó!

Agora esqueça tudo o que eu disse e vá a Itacaré! É onde estão os cenários mais bonitos e as ondas mais altas e fortes. É onde há um farol na praia das Conchas que, como diria Caetano, é lindo. É onde você vê surfistas profissionais e pessoas jogando altinha. Turistas, gringos, vikings, axé (sempre tem). É onde também você paga 15,00 dilmas em 50g de açaí. Nota-se que o lugar é mais procurado por turistas que vêm de longe e por isso é o mais caro de todos em que estive. Até porque os preços de comida, bebida e bugigangas são bem baratos em Ilhéus (em hospedagem não sei, pois ficamos “na faixa”) se comparados a cidades turísticas. Mas Itacaré vale a pena, pimpolhos. Você anda por um conjunto de pedras que forma a costa continental e vai pulando (e cortando o pé) de praia em praia, cada uma mais massa que outra: Resende, Tiririca e Ribeira. Antes disso, em meio as pedras você avista roots com seus dreads e camisetas do Planta & Raiz, deitados e colocando fogo na Babilônia (fire!). Obs.: Faltaram muitas para conhecermos. Um dia é pouco.

Além das praias, em Ilhéus tem um centro histórico, a casa de Jorge Amado, cenários de onde o escritor se inspirou para produzir seus livros, a casa de coronéis do cacau e uma fábrica de chocolate bem boa. Na rota de Ilhéus a Itacaré assim como ao extremo sul (que não fomos) há inúmeras cachoeiras para quem curte água de rio.

Agora vem as inutilidades: (I) a estrada em um Brasil de contrates e (II) as peculiaridades dos baianos e outros artifícios.

I. A estrada. Tem buraco. Ô se tem. Num certo trecho chega a ser impossível andar a mais de 30km/h. Nesse mesmo caminho, saindo de Posse-GO a Correntina-BA, há um momento em que a estrada parece não ter fim e não há nada, nadinha, em volta. Nem lâmpadas, nem cercas, nem carros passando. Desligar todas as luzes do carro neste momento é se imaginar no fundo abissal da escuridão obscura oculta e opaca do oceano de uma mente sem lembranças. Sério. O fim do mundo já havia ficado para trás. E nem caatinga era ainda. Era madrugada. Mas quando amanheceu e saímos do cerrado deu para perceber bem o contraste dos Brasis: do Brasil de praias lindas, de animais coloridos e de pessoas bem alimentadas com suas bochechas semi-rosadas e seus textos no Facebook; e o do Brasil do sertão árido, de vacas magras e famélicas, de jegues atropelados no asfalto, de vilarejos paupérrimos (e eram infinitos), de pessoas tentando a sorte na rodovia da esperança, vendendo qualquer tipo de fruta que se acha por ali. As veredas são bonitas. Mas o cenário a sua volta, não chega a tanto. Pode até parecer uma espécie de Arizona do agreste brasileiro, mas nem isso a glamourizaria. A grande Vitória da Conquista-BA vista assim que o sol nasce parece uma distopia, no meio da sequidão, algo como aquela pólis do filme Mad Max. Na volta passamos por uma corrutela onde as pessoas corriam com suas panelas, baldes e tambores para pegar água do caminhão-pipa. Isso não a muitos quilômetros da praia. Isso em estação de chuva. Isso num estado com inúmeros rios. Passamos também por um cortejo funeral. E é estranho haver um ritual de morte quando esta parece ser o elemento mais próximo e corriqueiro da região. Sei lá, talvez seja para lembrá-los de que estão vivos, celebrando a condição dos que ficam.

E não se assustem caso vejam coisas semelhantes nas cidades turísticas que mencionei. Em Ilhéus, por exemplo, faltou água. Itacaré, a cidade em si, é bem pouco desenvolvida, assim como as demais da Costa do Cacau. Não vão encontrar nada parecido com Rio de Janeiro ou mesmo Goiânia e Uberlândia. Fora da área central e dos points dos turistas, tudo o mais parece uma gigante periferia de cidade qualquer. Ao passar por Itabuna a impressão é que o Dom Almir ou o Sta. Efigênia agora eram caminho de acesso à praia. O saneamento é precário. Ilhéus à noite torna-se um grande banheiro de rodoviária, devido a seus odores nada convidativos. Ademais, o feeling de dendê para o turismo parece não ter sido o suficiente para retirar os baianos do repouso de suas redes em dias de feriado e domingo depois do almoço. Tudo fecha.

II. Fomos em dois shows. O primeiro: adivinhe, ordinária! “É o Tchan”. Sim. Meu primo gosta dessa desgracência. Enganou todo mundo que pensava ser só zueira. Como bom Sancho Pança que sou, o acompanhei. Mas a bem da verdade, é que eu e ele sabíamos as letras mais do que 90% dos humanoides que lá estavam. Afinal as músicas do Tchan ainda são as mesmas de 1998. Não bastasse, eu também sabia algumas coreografias (rapaz!). Os adolescentes nos olhavam estupefatos. Eu com uma camiseta do Red Hot Chilli Peppers, que é o mais próximo do axé que costumo ouvir. Ele com uma camiseta do Tchan que parodiava o Ramones, conseguiu por isso ir ao camarim de Beto Jamaica e do já idoso Compadre Washington, que subiu no palco de bengala e com uma sacola cheia de remédios para reumatismo e mal de Alzheimer. Éramos os únicos turistas bem perto do palco, pois ninguém mais dá moral para o ex-grupo de Carla Perez. Os nativos só estavam lá porque o show era free. Brigas rolando à nossa volta e a polícia levando com carinho os brigões, pessoas nos encoxando e nos empurrando e nos cuspindo, bêbados nos abraçando, me senti num verdadeiro baile de favela. Na Bahia até os bêbados mais chapados, aqueles que moram nas calçadas e batem ponto no bar do Jorge diuturnamente, dançam axé. Se em Goiás você os vê cantando aqueles modões sertanejos de 1972, lá eles dançam axé. E também querem te abraçar e chamar de irmão. Nesse quesito lamentavelmente os bêbados goianos e baianos não diferem.

O segundo show foi em um único e solitário bar que toca “rock” em Ilhéus. Foi por acaso. Entramos para beber. Lugarzinho pequeno e escondido em meio à muvuca babélica da avenida principal. Tocava uma banda de punk-reggae com uma pegada meio mangue beat, troço mais loko, chamado Quizila. O público parecia composto por universitários. Todos pareciam se conhecer. Olhar antropológico: lá pelas tantas do álcool, descobri que todo show na Bahia é um show de axé. Pelo menos a liturgia da paquera era exatamente a mesma que havia visualizado no show do É o Tchan. A embriaguez enquanto lubrificante social dispõe a formação dos parzinhos do seguinte modo: a moça está dançando e olhando a sua volta. O rapaz se interessa e se aproxima, e começa a dançar mais próximo da moça. Na Bahia, tem que dançar! Daí mais alguns sinais de parte a parte ocorrem (ou não) e o rapaz coloca a mão na cintura da moça, ela aceita e aí... tiveram muitos filhinhos e foram felizes para sempre lá na terra tututupá.

Daí a um tempo começou a cair um mundaréu de chuvas que parecia o Poseidon virando abaixo um balde com toda a água contida no Oceano Atlântico. A banda aguardava o cessar do aguaceiro para encerrar o show, mas quem disse que aquilo parava. Por isso eles continuavam até o dedo sangrar de tanto esmerilar a guitarra. Gente da plateia subiu ao palco para dar um descanso para os caras, mas lá fora as águas do São Francisco estavam poooooor cima da ponte. Deu três horas da manhã e nada. Na porta do bar, parecia o piscinão de Ramos. O jeito foi encarar. Consegui correr até o carro sem muito me molhar, mas veio um filho de Gabriela com Coronel do Cacau e jogou uma onda mais forte do que as de Itacaré em mim. Entramos no automóvel, que na verdade parecia uma lancha em meio ao dilúvio, e o João-pé-de-breque jogou o carro para cima de uma ilha da avenida. Pronto, por isso Ilhéus. Aí eu entendi tudo. Sobrevivemos.

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12 jan. 2016

Chapada dos Veadeiros (com primos miçangueiros)

Diferentemente da maioria dos relatos, este não será escrito, mas através de vídeo. Trata-se do documentário obviamente amador gravado com câmera de celular sobre a viagem à Chapada dos Veadeiros, Goiás. 



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20 dez. 2015

Rio quarenta caos

Olha, o Rio é muito massa. Nem sei por que demorei tanto tempo para ir. Agora se alguém perguntar “São Paulo ou Rio?”, direi sem pestanejar: “Rio, óbvio”. A cidade tem uma lógica fora do logos, muitas peculiaridades. É um caos bonito de ser ver e presenciar e participar. Os moradores sentem-se como turistas. Inclusive dei informações para um fluminense no metrô. E os vi tão empolgados com Paquetá quanto um forasteiro. Sei lá, parece que eles não são a cidade, mas estão ali temporariamente em volta de uma entidade, a própria cidade. Quem vai pela primeira vez, como eu, sente-se meio que levado por um fluxo fora da realidade, meio sonho, meio delírio.

O estereótipo do carioca arrogante tem pouco a ver. São em geral acolhedores, também por conta de sua condição de turistas em sua própria terra. São “para frente”, isso é verdade. São abertos ao diálogo. Tivemos alguns. Dois diálogos e dois episódios me chamaram atenção. Vou começar pelo meio.

Primeiro episódio. Ficamos alguns dias no morro do Leme, na favela da Babilônia. Na saída, pela manhãzinha, vi uma expedição eco-antropo-zoológica pela favela. Pessoas com uniformes semelhantes a abadás de fest folia caminhavam orientadas por dois guias, iam passeando pelas centenas de degraus da favela, registrando em imagens sua segunda experiência mais próxima com a pobreza (a primeira foi a leitura de “Vida Secas” de Graciliano), olhando com curiosidade e receio para os lados, estupefatas como quem passa diante de uma savana africana, aparentavam ser ricas ou de classe média alta (com essa crise danada, sacomé?!). Nós, mochileiros, estávamos ali na fronteira, no umbral, nem no lado dos expedicionários (no mineirês: aqueles que pedem dicionários), nem no dos leões (digo, moradores). Ali o primeiro mundo atravessava o último, e dificilmente enxergando algum “comum”.

Primeiro diálogo. Com uma senhora na orla de Ipanema. Uma trabalhadora de um dos banheiros pagos do calçadão. Contou que recebia 900,00/mês para ralar 8h/dia incluindo feriado e finais de semana. 900 pilas até dá pra fazer alguma coisa em Udia, mas num lugar onde uma coca-cola custa 10 reais? Pois é. No Rio você descobre que existe um mundo muito melhor, só que é muito mais caro. Ela então relatou que era pior quando trabalhava numa rede de supermercados ali perto, na zona sul. Recebia menos e sofria constante assédio moral. Os donos ricaços e os gerentes humilhavam os funcionários, que se digladiavam entre si. Contou das comidas estragadas que eles vendiam, que os funcionários tinham de comer e da qual os donos também se alimentavam. Não raras vezes todos passavam mal. O Rio finalmente ia me trazendo de volta à realidade que ele mesmo havia me tirado. De repente era um lugar igualzinho aos outros do Brasil que conheço.

Segundo diálogo. Com um senhor de 86 anos em Paquetá. Morrendo de fome pedi informações sobre um restaurante bom e barato (leia-se menos caro, afinal, os maiores roubos são dentro da lei). Ele não sabia bem. Mandou-me caminhar para algum rumo mas depois perguntou se eu era carioca e de onde eu vinha. “De Uberlândia”. Me pediu 1 minuto. Gastou 20. Contou como se tornou kardecista depois de ser cantor de uma igreja batista. O que tinha a ver com Uberlândia? Era perto de Uberaba, onde morou Chico Xavier (que era viado e o Roberto Carlos tem perna de pau, pau). Dizia não querer saber do meu credo - como a negativa de Freud. Ok. Pouco falei, a fome era grande. Perguntou o que eu fazia. “Professor de história”. Eu sabia que essa resposta seria a derrocada do meu almoço antes das 15h30. Dito e feito. Me pediu +5min. Gastou meia hora contando que era advogado do exército e foi contra a “Revolução de 64”. Era também sobrinho-neto de Castro Alves, por isso, antirracista. Comemorei. E neto de um general herói da Guerra do Paraguai. Por fim disse que, segundo Kardec, o espírita não pode ser personalista, mas me entregou um cartão com seu nome. “Lembre-se de mim”, finalizou.

Segundo episódio. Na volta de Paquetá à praça XV, já de noitinha, um trompetista de terno se dirige à proa da barca e começa um concerto improvisado e desajeitado, mas bonito, na bela embora suja Baía da Guanabara. O Rio me levou de volta a seu delírio, ao topos fora do chronos.

Por estas e outras que pretendo retornar. ❤

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26 jul. 2015