Buenos Aires dos sonhos de alguém

As luzes cintilavam... e o sonho cuja temática preenchia-se de uma cidade desconhecida, desabitada e de lâmpadas ofuscantes se desenrolava num tempo intangível, evidentemente, sob um cenário noturno e atravessado por uma temperatura irreal, sem ser possível identificar se era calor ou frio (é mais certo que nenhum dos dois). Tempo e clima por vezes são sinônimos. O começo deste sonho era continuamente sem começo, como todo sonho, em que se é lançado em certo local como a personagem de qualquer jogo de videogame. As luzes das janelas dos prédios, extensos, tanto horizontais como verticais, todos eles, cintilavam contrastando naquele céu sobremaneira nublado, coalhado de nuvens, declarando promessas de tempestade. Aos pés de olhares inquietos viam-se águas de um mar sem praia, um mar cor azul que de tão escuro era quase negro. E várias embarcações, inúmeras, de todas as formas e tipos, entretanto com destaque para veleiros compridos. Nada acontecia. O acontecimento era semi-estático. Vez ou outra ouvia-se vozes, vozes ininteligíveis, não por serem inaudíveis e sim por vibrarem noutra frequência, num idioma estrangeiro ao do dono do sonho. Escutavam-se sons, possivelmente palavras, contudo, nenhum sinal imagético de gente. E ele ficava ali. Tudo se repetia.


E em uma destas repetições Max Azzolini e Amélie Sorell desceram do avião vindo do Brasil e entraram dentro do carro de um desconhecido cujo nome sequer aprenderam e cuja língua a eles era estranha. Velozmente adentraram noite adentro pelas fascination streets, por horas, por dias, por meses, ali sendo levados sabe-se lá Deus para onde, já que mal podiam enxergar as luzes dos postes, tudo era escuro e via-se no máximo seus rostos na penumbra, cúmplices... e estranhamente felizes. Circularam onde as ruas não têm nome até chegarem ao local em que um homem, também desconhecido mas de nome familiar, os recebera. ¡Bienvenidos! Cordial e atencioso, como todos que encontrariam nos próximos dias, os deixou, partindo naquela avançada noite gelada. Famintos e desterrados, tiveram que ir se adaptando aos poucos àquele linguajar e jeito de ser para se alimentarem de uma pizza que demorou horas de confusão e gordura até chegar. Noutro dia, estavam, com o despertar do sol tímido e congelante que sorriu monalisamente naquela manhã, no mesmo-outro pseudo-cenário central do sonho. Era dia. Luzes apagadas senão a do astro-rei. Pessoas por toda a volta. Pontes: algumas comuns, algumas sofisticadas. Barcos. Ah sim, mas eram poucos e pouco variados. Vozes por toda a volta. Semelhantes àquelas de outrora. As águas não eram nem de longe azuis. Turvas, sujas, pouco atraentes. Edifícios homéricos. Modernos e lisos ou antigos e minimalistas. Uma arquitetura que fazia da cidade dos sonhos um descomunal museu a céu aberto.

E, por mencionar museus, ah, isso é matéria de que os argentinos gostam e entendem. Max Azzolini argumentou para convencer Amélie de sua constatação segundo a qual o caos e a arte em Buenos Aires têm sua razão de ser. Além da arquitetura compondo esteticamente aquele cenário, que mistura elementos de uma Nova Iorque latino-americana e uma, qualquer uma, das grandes e antigas cidades europeias, contempla-se arte viva nas calles e nos subtes (de longe ouvia-se uma voz triste e afinada de um rapaz com violão em um dos cantos do metrô com destino ao Congresso de Tucumán). Artistas tão qualificados quanto os que angariavam pesos e reais em bares e restaurantes (“cafés” se quedan por toda a volta). Com efeito artistas melhores do que os que avistamos em “nossa terra”, considerou srta. Sorell. Não deixaram de registrar que havia arte até mesmo no edifício da companhia de água ou em cemitérios, como o da Recoleta, bairro da antiga aristocracia de Buenos Aires. Lendas, histórias curiosas e personagens célebres fazem do lugar um dos pontos turísticos mais visitados por ali. Mausoléus ornados, nababescos, uma verdadeira cidade dos mortos jaz dentro da más grande ciudad de la tierra de Río de la Plata. Sem dispender nenhuma plata, entraram no Museu de Belas-Artes e se perderam nos labirintos das seções que se bifurcam... Max ficou maravilhado com a pequena exposição de Francisco de Goya que ali estava. Mas havia também obras de Van Gogh, Monet, Degas, Renoir e de artistas locais como Luis Felipe Noé. Ao avistarem uma multidão passando pelos corredores do primeiro piso ao andar mais alto, como agentes nada discretos, se infiltraram de modo estabanado no meio daquele povaréu para ver do que se tratava. Era inauguração da exposição de Noé. Arte contemporânea, abstração, caos, crítica ao modernismo. As pernas e as falas tergiversaram pelas salas até cansarem. Ao descerem se depararam com uma fila inacreditável de pessoas que aguardavam o esvaziamento do local para subirem. Sair do museu custou alguma energia porque, lá fora, outra multidão de gente elegante se acotovelava para acessar a exposição de Noé. Assim como a arte, a elegância do argentino está em todos os locais. Até em uma senhora no ponto de ônibus passando informações a pessoas de outro país. As buzinas intermitentes do trânsito de Buenos Aires parecem arte, uma orquestra cujo maestro é a aleatoriedade. As brigas são encenadas, teatralidade. Cães que ladram e não mordem.

Museo Nacional de Bellas Artes
 Visitaram outros museus. O do humor, esvaziado e consideraram-no sem graça, uma arte mais crítica do que bem-humorada para combinar com o espírito daquele povo e peças materiais de um antiquário; o de arte contemporânea, em que a atração mais interessante localizava-se numa enorme sala escura abarrotada da metáfora que habita a maior parte dos corações humanos nestes tempos sombrios – teias de aranha; e o de artes latino-americanas (MALBA), lotado, com poucas obras, entre as quais uma de Frida, outra de Diego Rivera e cuja maior atração era o “Abaporu”, célebre quadro de Tarsila do Brasil. Na área urbana próxima ao museu era possível visualizar como em toda a cidade diversos monumentos históricos, isto é, estátuas, de deuses e de heróis - outra fixação dos argentinos etnografada por Amélie, bem como a memória de seus ex-presidentes. Surpresos também ficaram os transeuntes com as imagens de nacionalismo e com o orgulho efusivo de uma dada cultura latino-americana, especialmente de esquerda, registrada no sem número de bandeiras da Argentina espalhadas por todo o canto da ciudad autónoma, assim como no nome de ruas, em souvenirs e estabelecimentos comerciais (um deles tratava-se de um café, salvo engano, na calle Bolívar, desenhado com as linhas da arquitetura de Havana e cujo título era “El Rey Fidel”, do passeio se avistava uma estátua em acrílico do próprio Fidel Castro, paramentado na sacada com corrimão feito de madeira).

O tour de subte, colectivo e a pé pela ciudad percorreu, além da inevitável Casa Rosada e por extensão a Plaza de Mayo, também parte da Recoleta (onde se embriagaram com Chopp Patagônia e se deitaram no gramado em que fica a diacrônica escultura Floralis Generica), de Palermo (onde tentaram fazer compras mas no máximo devoraram com sofreguidão um hambúrguer apetitoso pero no mucho argentino e se enveredaram por um Jardim Botânico), Barrío Chino (com seus badulaques xinguilingues), San Telmo (e sua famosa e extensíssima feira sob um frio tiritante), El Caminito (com seus tangos mequetrefes e cacarecos típicos) e, por fim, o estádio La Bombonera, no suburbano bairro de La Boca. Impossível não se impressionar com a arquitetura do tal estádio caixa de bombons (pequena, espremida e íngreme) e com a gigantesca fama do time mais popular entre os rioplatenses, o Boca Juniors. Em uma área de uns bons quilômetros quadrados tudo remete ao Boca: as cores em azul e amarelo, os bares, as ruas, as lojas, as pessoas. Perceberam a presença de brasileiros fãs de futebol e coincidentemente conheceram um argentino (dono de uma das dezenas de lojas de artigos de futebol) cujo apelido nas redondezas é “brasileiro”, por razão de ter morado por anos em Brasil e desejar regressar.

Tudo era novo e repetido. A impressão de se chegar a um lugar que nunca havia ido antes e de, ao mesmo tempo, se sentir familiar. A cada dia, manhã após manhã, as buzinas, o sotaque ininteligível da fala apressada do cotidiano, as gentilezas formais, os passos trançando as pernas, sombras que caminhavam caoticamente numa indecisão de rumo e, cá entre nós, mais se assemelhavam a uma dança do que a uma corrida, os quioscos, o frio, as medialunas, os livros, as canções sobre uma tristeza feliz a rodar, a rodar, a rodar suas vidas, os casarões, pessoas bem vestidas nos cafés, os senhores ilícitos da calle Florida gritando baixinho “¡Cambio, Cambio, Cambio!”, as palavras, os enigmas... faziam Max Azzolini gostar de abrir os olhos e estar vivo para contemplar novamente o mesmo-outro cenário de seu passado futuro, o ponto zero, do tempo antes do tempo, estar ali, ainda que não o estivesse... observar cintilar as luzes das janelas dos edifícios horizontais e verticais, extensos, infinitos naquelas raias, as águas ainda eram turvas mas tivera a capacidade de imaginá-las em breves ondas azuis enegrecidas, os sons, o vento e as belas embarcações sob um céu nublado faziam companhia ao vazio abissal do local, ele sorria de modo extremamente comum, motivado por uma felicidade escondida, interna, secreta, dramática, talvez, argentina. Estavam em Puerto Madero. O reconheceram. Já estiveram antes. Mas, sim, tudo é novo (Heráclito já o disse). Como indicou uma fotógrafa portenha, o ato de reconhecer significa ver novamente aquilo que nunca havíamos visto antes. A partir de um wallpaper de computador, sua imaginação criou o sonho. E o sonho lhe pôs neste porto, o tempo o colocou do outro lado. Num Déjà vu. As luzes, elas cintilavam...


Max y Amélie al lado del Caminito

.................

24 de jul. 2017

Nenhum comentário:

Postar um comentário