Bahia sem salvador

O que é que a Bahia tem? Ôche, meu rei, são tantas coisas que nem o textão que vou escrever abaixo (para matar as saudades) seria capaz de dar conta. Mas vale a pena tentar para, além de dar dicas a quem pretende se aventurar por aquelas bandas, também cumprir com a parte final de uma viagem e aquilo que lhe eterniza, isto é, compartilhá-la.

Então primeiro as utilidades.

Percorremos 1500 km de Goiânia a Ilhéus, atravessando o nordeste goiano e o centro-sul-leste baiano. Gastamos entre 21h e 22h de viagem sem parada para dormir. Compensa viajar de carro? Se te interessa economizar grana, conhecer paisagens antes vistas só pela TV (como a usina eólica de Caetité que por um momento pensei ser a Nave-Mãe dos aliens tentando contatos de 4º grau) ou imaginadas pelos livros de Guimarães Rosa (embora os bois do Grande Sertão não conversem, uma pena!) e vivenciar episódios inusitados (como o chupa-cabras que correu em frente ao carro às 2h da madrugada em plena serra da caatinga), então, compensa, sim. Vai na fé. Agora se você não quer se cansar e chegar rápido ao destino final sem ouvir todos os álbuns do Trio Parada Dura (meu tio curte) ou do É o Tchan (meu primo curte), vá de avião, jovem gafanhoto! Mas compre com antecedência ou pensará estar pagando passagem para Madagascar.

Em torno de dez cidades compõem a chamada Costa do Cacau. Passamos por pelo menos sete delas e fomos em praias de umas cinco: Ilhéus, Olivença, Uruçuca, Serra Grande (essa só o mirante) e Itacaré. Dessas aí, Ilhéus, a maior delas e onde ficamos, é a que tem as praias menos bonitas e limpas (exceto pela Praia das Conchas, uma formosura que para ser perfeita precisava apenas retirar as barracas, as latinhas e as gentes). Entre as três primeiras cidades citadas, recomendo para quem gosta de gente, movimento e virote ir às praias do sul, onde ficam as Praias dos Milionários, de Back Door, de Batuba e etc.; já para quem gosta de substituir pessoas por areias brancas, silêncio e conchas, vá às praias do norte, como as de São Domingos e Mamoã. A praia mais massa dessa tríade é a de Cururupe. Pois, apesar de ser a mais cheia de seres humanos e músicas do Psirico, é onde acontece um encontro de águas doce e salgada [que no fim fica tudo salgada, como bom goiano, eu experimentei 😉 ]. Um braço do Rio Cachoeira passa ao ladinho do mar formando uma espécie de banco de areia e vai raleando aos poucos até chegar ao Atlântico. Dentro do rio você vê a praia e logo depois dela, o oceano. É bem biurifó!

Agora esqueça tudo o que eu disse e vá a Itacaré! É onde estão os cenários mais bonitos e as ondas mais altas e fortes. É onde há um farol na praia das Conchas que, como diria Caetano, é lindo. É onde você vê surfistas profissionais e pessoas jogando altinha. Turistas, gringos, vikings, axé (sempre tem). É onde também você paga 15,00 dilmas em 50g de açaí. Nota-se que o lugar é mais procurado por turistas que vêm de longe e por isso é o mais caro de todos em que estive. Até porque os preços de comida, bebida e bugigangas são bem baratos em Ilhéus (em hospedagem não sei, pois ficamos “na faixa”) se comparados a cidades turísticas. Mas Itacaré vale a pena, pimpolhos. Você anda por um conjunto de pedras que forma a costa continental e vai pulando (e cortando o pé) de praia em praia, cada uma mais massa que outra: Resende, Tiririca e Ribeira. Antes disso, em meio as pedras você avista roots com seus dreads e camisetas do Planta & Raiz, deitados e colocando fogo na Babilônia (fire!). Obs.: Faltaram muitas para conhecermos. Um dia é pouco.

Além das praias, em Ilhéus tem um centro histórico, a casa de Jorge Amado, cenários de onde o escritor se inspirou para produzir seus livros, a casa de coronéis do cacau e uma fábrica de chocolate bem boa. Na rota de Ilhéus a Itacaré assim como ao extremo sul (que não fomos) há inúmeras cachoeiras para quem curte água de rio.

Agora vem as inutilidades: (I) a estrada em um Brasil de contrates e (II) as peculiaridades dos baianos e outros artifícios.

I. A estrada. Tem buraco. Ô se tem. Num certo trecho chega a ser impossível andar a mais de 30km/h. Nesse mesmo caminho, saindo de Posse-GO a Correntina-BA, há um momento em que a estrada parece não ter fim e não há nada, nadinha, em volta. Nem lâmpadas, nem cercas, nem carros passando. Desligar todas as luzes do carro neste momento é se imaginar no fundo abissal da escuridão obscura oculta e opaca do oceano de uma mente sem lembranças. Sério. O fim do mundo já havia ficado para trás. E nem caatinga era ainda. Era madrugada. Mas quando amanheceu e saímos do cerrado deu para perceber bem o contraste dos Brasis: do Brasil de praias lindas, de animais coloridos e de pessoas bem alimentadas com suas bochechas semi-rosadas e seus textos no Facebook; e o do Brasil do sertão árido, de vacas magras e famélicas, de jegues atropelados no asfalto, de vilarejos paupérrimos (e eram infinitos), de pessoas tentando a sorte na rodovia da esperança, vendendo qualquer tipo de fruta que se acha por ali. As veredas são bonitas. Mas o cenário a sua volta, não chega a tanto. Pode até parecer uma espécie de Arizona do agreste brasileiro, mas nem isso a glamourizaria. A grande Vitória da Conquista-BA vista assim que o sol nasce parece uma distopia, no meio da sequidão, algo como aquela pólis do filme Mad Max. Na volta passamos por uma corrutela onde as pessoas corriam com suas panelas, baldes e tambores para pegar água do caminhão-pipa. Isso não a muitos quilômetros da praia. Isso em estação de chuva. Isso num estado com inúmeros rios. Passamos também por um cortejo funeral. E é estranho haver um ritual de morte quando esta parece ser o elemento mais próximo e corriqueiro da região. Sei lá, talvez seja para lembrá-los de que estão vivos, celebrando a condição dos que ficam.

E não se assustem caso vejam coisas semelhantes nas cidades turísticas que mencionei. Em Ilhéus, por exemplo, faltou água. Itacaré, a cidade em si, é bem pouco desenvolvida, assim como as demais da Costa do Cacau. Não vão encontrar nada parecido com Rio de Janeiro ou mesmo Goiânia e Uberlândia. Fora da área central e dos points dos turistas, tudo o mais parece uma gigante periferia de cidade qualquer. Ao passar por Itabuna a impressão é que o Dom Almir ou o Sta. Efigênia agora eram caminho de acesso à praia. O saneamento é precário. Ilhéus à noite torna-se um grande banheiro de rodoviária, devido a seus odores nada convidativos. Ademais, o feeling de dendê para o turismo parece não ter sido o suficiente para retirar os baianos do repouso de suas redes em dias de feriado e domingo depois do almoço. Tudo fecha.

II. Fomos em dois shows. O primeiro: adivinhe, ordinária! “É o Tchan”. Sim. Meu primo gosta dessa desgracência. Enganou todo mundo que pensava ser só zueira. Como bom Sancho Pança que sou, o acompanhei. Mas a bem da verdade, é que eu e ele sabíamos as letras mais do que 90% dos humanoides que lá estavam. Afinal as músicas do Tchan ainda são as mesmas de 1998. Não bastasse, eu também sabia algumas coreografias (rapaz!). Os adolescentes nos olhavam estupefatos. Eu com uma camiseta do Red Hot Chilli Peppers, que é o mais próximo do axé que costumo ouvir. Ele com uma camiseta do Tchan que parodiava o Ramones, conseguiu por isso ir ao camarim de Beto Jamaica e do já idoso Compadre Washington, que subiu no palco de bengala e com uma sacola cheia de remédios para reumatismo e mal de Alzheimer. Éramos os únicos turistas bem perto do palco, pois ninguém mais dá moral para o ex-grupo de Carla Perez. Os nativos só estavam lá porque o show era free. Brigas rolando à nossa volta e a polícia levando com carinho os brigões, pessoas nos encoxando e nos empurrando e nos cuspindo, bêbados nos abraçando, me senti num verdadeiro baile de favela. Na Bahia até os bêbados mais chapados, aqueles que moram nas calçadas e batem ponto no bar do Jorge diuturnamente, dançam axé. Se em Goiás você os vê cantando aqueles modões sertanejos de 1972, lá eles dançam axé. E também querem te abraçar e chamar de irmão. Nesse quesito lamentavelmente os bêbados goianos e baianos não diferem.

O segundo show foi em um único e solitário bar que toca “rock” em Ilhéus. Foi por acaso. Entramos para beber. Lugarzinho pequeno e escondido em meio à muvuca babélica da avenida principal. Tocava uma banda de punk-reggae com uma pegada meio mangue beat, troço mais loko, chamado Quizila. O público parecia composto por universitários. Todos pareciam se conhecer. Olhar antropológico: lá pelas tantas do álcool, descobri que todo show na Bahia é um show de axé. Pelo menos a liturgia da paquera era exatamente a mesma que havia visualizado no show do É o Tchan. A embriaguez enquanto lubrificante social dispõe a formação dos parzinhos do seguinte modo: a moça está dançando e olhando a sua volta. O rapaz se interessa e se aproxima, e começa a dançar mais próximo da moça. Na Bahia, tem que dançar! Daí mais alguns sinais de parte a parte ocorrem (ou não) e o rapaz coloca a mão na cintura da moça, ela aceita e aí... tiveram muitos filhinhos e foram felizes para sempre lá na terra tututupá.

Daí a um tempo começou a cair um mundaréu de chuvas que parecia o Poseidon virando abaixo um balde com toda a água contida no Oceano Atlântico. A banda aguardava o cessar do aguaceiro para encerrar o show, mas quem disse que aquilo parava. Por isso eles continuavam até o dedo sangrar de tanto esmerilar a guitarra. Gente da plateia subiu ao palco para dar um descanso para os caras, mas lá fora as águas do São Francisco estavam poooooor cima da ponte. Deu três horas da manhã e nada. Na porta do bar, parecia o piscinão de Ramos. O jeito foi encarar. Consegui correr até o carro sem muito me molhar, mas veio um filho de Gabriela com Coronel do Cacau e jogou uma onda mais forte do que as de Itacaré em mim. Entramos no automóvel, que na verdade parecia uma lancha em meio ao dilúvio, e o João-pé-de-breque jogou o carro para cima de uma ilha da avenida. Pronto, por isso Ilhéus. Aí eu entendi tudo. Sobrevivemos.

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12 jan. 2016

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