Algumas Gerais das Minas: Botumirim e Januária

 

Gerais. Substantivo masculino plural. Segundo o dicionário Michaelis, significa: 1. Área de grande extensão, coberta de vegetação rasteira, típica do Planalto central; 2. Localidades distantes e desertas; 3. (regionalismo nordestino) Terrenos cobertos de mato. Indo além do que diz o dicionário, as regiões do norte do estado de Minas Gerais são popularmente conhecidas como “Gerais”. E o geraizeiro é o habitante tradicional que vive geralmente às margens do rio São Francisco. Essa breve viagem traçou percurso em um pedaço das famosas Gerais, eternizadas na literatura de Guimarães Rosa.

Rio São Francisco, Januária

Botumirim-MG

Botumirim é uma cidade que provavelmente você nunca ouviu falar. Possui pouco mais de 6 mil habitantes (Censo 2010) e está localizada a 180km a leste de Montes Claros, a maior cidade do norte mineiro (414 mil habitantes, estimativa do Censo 2022). Botumirim se tornou conhecida (ao menos entre ornitólogos e observadores de pássaros) a partir de 2015, quando, por acaso, um ornitólogo da UFMG fez uma descoberta. Melhor dizendo, fez uma redescoberta. Avistou nas gerais do município uma espécie dada como extinta havia mais de 70 anos: a rolinha-do-planalto. O achado foi tão surpreendente que uma reserva ambiental foi criada, em 2018, a fim de ajudar na preservação do habitat natural da espécie: a Reserva Natural Rolinha-do-planalto. Na época, diziam existir somente em torno de 30 indivíduos. Desde então, pesquisadores, observadores de aves e turistas de natureza do Brasil e do mundo (sim, um punhado de gringos com suas câmeras, microfones, cadernetas, chapeuzinhos de escoteiro e tudo mais) tem ido ao local por causa do animal alado.

Não foi precisamente em razão da rolinha-do-planalto que fomos a Botumirim. Mas, sem dúvidas, toda essa história foi decisiva. Através de uma dupla de passarinheiros que seguimos no Instagram (Irmãos Pompéu) descobrimos a existência de um sítio-pousada no município (Recanto das Aves) cujo chamariz são (adivinhem) os pássaros, obviamente. Pensamos: “poxa, esse lugar bacana está relativamente próximo de onde moramos (600km de Patos de Minas), então por que não ir?”. E fomos. Mas antes de lá chegar fizemos uma parada em Montes Claros, onde paramos para dormir e encontrar uma amiga de Ana. Nesse dia conhecemos uma bebida onipresente na viagem, o suco de coquinho. Bastante popular no norte de Minas. Tem gosto de pequi e, como bom goiano, me apeteceu. Porém o pequi é uma comida “quente” e o suco, refrescante.

Ao chegarmos no Recanto das Aves no dia seguinte, fomos recebidos por Nide, nossa anfitriã e proprietária do local. É uma senhora que mora e administra sozinha a pousada. Ela nos contou que, em 2020, após o falecimento do marido, decidiu abrir a residência para o turismo. “90% dos hóspedes são passarinheiros”, revelou. É um lugar simples, com jeito de roça, mas com um cuidado de chácara. Cavalos, vacas, galinhas, mas também jardins bem cuidados e pomares. Ela montou um comedouro para os pássaros na frente da área externa da casa. Dá para ficar sentadinho, tomando suco e tirando fotos de canários-da-terra, sabiás, sanhaços, cardeais-do-nordeste, pipiras-pretas, beija-flores e outras tantas espécies. Os passarinhos ficam folgados e começam a fazer ninhos dentro da casa. Uma pequena corruíra cantarolava e construía seu ninho dentro de uma cabaça colorida como boneca, que ficava na sala de estar. Nos pomares são usadas algumas técnicas da agroecologia e é possível avistar duas espécies de codornas que vão lá se alimentar com frequência (embora não as tenhamos visto). Dentro do sítio há também um córrego e uma cachoeira, o que é bastante útil em vista do calor torturante que faz no norte de Minas. A cachoeira fica bem protegida em uma matinha, mas infelizmente o poço estava consideravelmente raso devido à escassez de água nessa época do ano. Mesmo assim, é claro que demos um tchibum.

Cachoeira do Recanto das Aves (tentativa de foto conceitual)


Em um dos dias fomos ao Rio do Peixe. 14km da pousada via estrada de terra. Chegamos a errar o caminho (se não for assim, não é a gente). Mas depois deu certo. Como não tinha chovido, a estrada estava firme e foi relativamente tranquilo passar com um carro sem tração. Mas não sei. Acho que na época de chuva deve ficar bem mais complicado. O Rio do Peixe me lembrou algumas paisagens da Serra da Canastra e, ao mesmo tempo, da Chapada dos Veadeiros. Pelas rochas e pela vegetação em volta. O curso de água estava estreito. Ainda assim, vários poços e piscinas naturais se formavam nos caminhos entre as pedras nuas de água. E mesmo na secura, o lugar tem uma beleza de se admirar. Em uma de suas margens, forma-se uma verdadeira prainha. Chegamos no fim da tarde e não deu para aproveitar muito. Mas com certeza era um lugar que dava para passar pelo menos metade do dia (claro, levando comida, água e etc.). Havia outras atrações em Botumirim, como um sítio arqueológico e outras cachoeiras e rios. Algumas muito distantes e que não compensavam na ocasião. Até cogitamos ir a outra cachoeira (“das quatro oitavas”) que ficava a 3km da cidade, porém declinamos em razão da possível falta d’água. Vou deixar link para um site que traz informações sobre as “belezas de Botumirim”.

 

Rio do Peixe em outubro, Botumirim (foto: Ana Rita Silva)

Para fechar o rolê por Botumirim, resolvemos fazer o passeio do Parque Natural da Rolinha-do-planalto. Digo “resolvemos” porque, pelo menos de minha parte, não havia tanto entusiasmo em ir lá ver a tal rolinha, não. Honestamente, não imaginava a dimensão de importância que esse bichinho tinha para o povo botumirinense. Há placas e pequenos outdoors sobre as "belezas de Botumirim" nas ruas da pequena cidadezinha e cujo destaque é a rolinha. Mas é aquela coisa que sempre falamos durante as viagens malucas que fazemos: “já que estamos aqui”. Não é barato. Paga-se 70,00 reais por pessoa para acessar a reserva com um guia e conseguir avistar o raro pássaro. Achei que seria difícil encontrá-lo. Achei errado. Encontramos o guia Gleidson no início da estrada que contorna o parque. Nós de carro, o guia de quadriciclo atrás e na frente de todos, um micro-ônibus apinhado de gringos dos Estados Unidos e da Holanda, quase todos idosos. Em menos de 20 minutos param. Desce todo mundo do carro. Sacam as câmeras, os microfones, os binóculos, os telescópios (é sério). Tudo muito chique e possivelmente caro. O guia que eles levaram avistou a rolinha à média distância. Lá vai todo mundo observar o penoso e ouvir seu canto, que parecia um coaxar de anuro. Depois, de quatro em quatro, o guia autoriza atravessar a cerca, entrar de fato na área do parque (pois é, estávamos nos arredores, na estrada) para chegar mais perto do bicho e fotografá-lo. Felizmente para nós é uma espécie muito mansa e aceita a aproximação. Fica parada no mesmo local por muitos minutos. O que deve ser ruim para ela, tornando-se presa mais fácil. Gleidson nos explicou que atualmente restaram apenas dois indivíduos: Benjamin e Solteirão. Sim, os bichos são tão poucos que até nomes têm. Sobraram dois machos. E isso significa o que você está pensando mesmo. Parece ser o fim. Fim da linha para a rolinha-do-planalto na natureza. Estão fazendo de tudo para uma reprodução em cativeiro, em laboratório, levar ovo para não sei onde. Mas está difícil. Uma pena! Com o perdão do trocadilho. Logo agora que eu tinha simpatizado com o bichinho.

Terminado o avistamento da ave em extinção eminente, o guia nos levou estrada adentro para ver se conseguíamos fazer registros de outras espécies de ocorrência por aquelas bandas. Não conseguimos tirar fotos da meia-lua-do-cerrado, mas não saímos de mãos abanando. Deu para registrar choca-do-nordeste, tem-farinha-aí, vite-vite-de-olho-cinza, periquito-da-catinga e chorozinho-de-chapéu-preto. O pessoal é bastante criativo ao colocar esses nomes populares oficiais nos pássaros. Me divirto. Sobre o “tem-farinha-aí”, dizem que canta essa frase. Tem que forçar demais o ouvido para entender! No retorno, paramos para pegar o quadriculo do guia e aí quem estava na cerca, bem pertinho da gente? Ela mesma, a rolinha-do-planalto. Mais tranquila do que vaca na Índia. Serena. Nem imagina que sua espécie vai de arrasta para cima. Deu para tirar fotos melhores. Para finalizar, adentramos com o guia na reserva, mas já era tarde e o sol ardia. A passarinhada já tinha em boa parte se escondido nas matas. Nos restou experimentarmos frutas do cerrado: mangaba e guariroba (genérica).

Rolinha-do-planalto, toda encolhida no início da manhã

 

Januária-MG

Era para a viagem ter finalizado aí e voltarmos para casa para descansar durante o resto da semana do saco cheio, essa gloriosa instituição mineira ô salve, salve. Mas decidimos seguir uma dica de um amigo da amiga da Ana (que conhecemos na passagem por Montes Claros) e acabamos rumando para Januária. Um desvio de uns 200km na rota de retorno. Ele nos contou que, nessa época do ano, o Rio São Francisco fica com as águas baixas e forma praias em Januária, atraindo centenas de banhistas. O “porém” é que, segundo ele, tudo acabaria no domingo em razão do início das chuvas. Além do mais, a outra atração turística supimpa em Januária é um parque/sítio arqueológico.

Chegamos no finzinho da tarde em Januária e conseguimos uma hospedagem barata (embora apenas para um dia) cuja sacada tinha vista para o Rio São Francisco. Sobre Januária, trata-se de uma cidade de 67 mil habitantes (Censo de 2010), com importante patrimônio histórico, material e imaterial. Embora seja a terceira maior do norte de Minas, os problemas infra-estruturais e a pobreza saltam aos olhos. Para começar, uma parte da cidade ainda tem ruas de chão batido. No centro, há casarões antigos como parte do patrimônio histórico e ruas calçadas de pedras, como em Diamantina. No entanto, o patrimônio histórico me pareceu descuidado. Acredito que parte desse patrimônio deve ter sido destruído porque não havia homogeneidade entre as construções. Apesar de local turístico e de um baita feriado, o clima é de cidade pequena, sem agitação. Rodando pelo norte mineiro, ouvindo o sotaque do povo e o trato, a impressão é que se está em outro estado que não Minas Gerais. Quer dizer, ao menos aos olhos de quem passou a maior parte da vida no Goiás e no Triângulo Mineiro.


Parque Nacional Cavernas do Peruaçu

O parque cavernoso fica localizado entre os munícipios de Januária e Itacarambi. Não é pertinho do centro de Januária. Na verdade, uns 40km pela rodovia. Depois mais alguns por estrada de terra, a depender da entrada do parque que escolher entrar. É imenso o tal parque. 56 mil hectares de área. E nós tivemos muita sorte. Há um limite de visitantes por dia, controlado pelo ICMBio, que administra a Unidade de Conservação. Quando chegamos em Januária, não tínhamos a mínima informação disso. Tampouco sabíamos que, para entrar no parque, era necessário contratar um(a) guia. Conseguimos o contato de uma guia recomendada pelo recepcionista do hotel. Já era tarde da noite quando finalmente combinamos os detalhes do passeio. No máximo, às 8h da manhã tínhamos que estar no início da estrada que dá acesso ao parque. 200,00 reais esse rolê. Como estávamos apenas em dois, ficou carinho. Mas o grupo pode ter oito pessoas. Posteriormente, a guia Amanda nos revelou que todos os dias desse feriado prolongado já estavam preenchidos. Para nossa alegria, houve desistência de um dos grupos previamente agendado e entramos nessa vaga. Descobrimos que havia muitos roteiros para percorrer no parque e muitos sítios para visitar. Para ver tudo o que é aberto ao público, levaríamos entre quatro a cinco dias. Amanda nos recomendou o passeio do Janelão, porque a trilha é curta e relativamente leve, além de que haveria mais diversidade em relação ao que ver.

Pinturas rupéstres na entrada do Janelão, Parque Nacional Cavernas do Peruaçu


A trilha do Janelão começa dentro da mata, protegida pela sombra de um cânion. Esse início é bem leve e íamos sendo acompanhados por passarinhos e mocós, muitos mocós (um pequeno roedor que parece um preá). Finalizada essa parte da mata chega-se a um paredão com muitas pinturas rupestres. A guia explicou que há pelos menos três estilos de traçados artísticos nas paredes, com datações distintas. O que leva a concluir que tiveram povos diferentes que passaram por aquele local. Os tais seres humanos das cavernas, ao menos por aquelas bandas, não viviam dentro das cavernas, mas fora. Protegidos das chuvas pela inclinação do cânion, do sol pelas matas e dos perigos (animais, grupos rivais) pela visibilidade exterior das cavernas. Depois, finalmente, entramos na caverna propriamente dita. É um negócio absolutamente gigantesco. Nada parecido com as cavernas de nossa imaginação. O teto é da altura de um prédio de, sei lá, uns 200 andares. Sem brincadeira. Ao mesmo tempo em que as paredes formam abóbodas, há também aberturas circulares por onde entra a luz do sol. É iluminado o local. Lá dentro, uma vegetação própria e um microclima específico. Muito mais fresco e agradável. A trilha passa a exigir um pouco mais porque aparecem degraus feitos pelo pessoal do parque para descer ao fundo do buraco. Dentro corre um pequeno riacho, o que faz com que o cenário se assemelhe ao filme Jurassic Park. Nas formações rochosas, além das estalactites e estalagmites, aparecem figuras que as pessoas interpretam: uma tartaruga, uma bruxa, um conjunto de cogumelos, uma perna de bailarina. Depois de caminhar um tantinho bom dentro da caverna, chega-se finalmente ao tal janelão. Uma abertura imensa no fim desse trecho. Tudo é muito bonito, mas bonito não é a palavra exata. É interessante, curioso, instigante e surpreendente. Sei lá. Só visitando mesmo para ter a real impressão. Apesar de ser graduado em história, é a primeira vez que visito um sítio arqueológico. Não é minha praia de estudos, mas gostei demais do passeio.

 

Gruta do Janelão (foto: Ana Rita Silva)

Amanda explicou que há partes do parque que não são abertas ao público. Há cavernas escuras. Muitas pesquisas continuam sendo feitas, bem como estratégias estão sendo pensadas para receber turistas em outros desses locais. Há também um projeto de tornar o parque digital. A ideia é basicamente que as pessoas possam ver de casa todos os lugares do parque por meio de algo semelhante ao Google Street. Creio que não demora a ficar pronto. Sobre a antiguidade da cultura material, para terem uma ideia, a datação mais antiga de ossadas humanas encontradas no sítio possui 10 mil anos. Mas há utensílios líticos datados com mais milênios. Sobre a visitação turística, o parque está aberto desde 2015. Se quiser mais informações, vou deixar o link de acesso ao site. Nele, há uma lista de guias (condutores). Seja mais esperto do que vos escreve e agende com antecedência.

 

Praia do Rio São Francisco

Depois da canseira da caminhada no parque e um saboroso almoço no Recanto das Pedras (um restaurante/pousada na saída do parque), no fim da tarde fomos para nosso segundo destino em Januária: a praia de água do doce. Assim como foi com o parque, confesso que subestimei o tamanho deste evento. É basicamente uma praia com mesma dimensão e estrutura de uma praia convencional de mar. Sem tirar nem pôr. Tinha bastante gente. Claro que não igual a Copacabana no verão. Mas uma Ubatuba da vida, vai. Barracas, bares, cerveja, caixa de som, gente vendendo coisas, balanços, barcos, jet-skis, caiaques, guarda-vidas. Tudo igual. A água, é claro, é água de rio. Mais turva. Menos fria. Na real, uma temperatura excelente para amenizar (essa é a palavra) o calor do norte mineiro. A prefeitura colocou um cordão com boias para avisar ao pessoal sobre os limites do Rio São Francisco. Onde não se deve passar. Sabe como é, esse rio não é para brincadeiras. Já levou muita gente. Se bobear, leva mais. E realmente me impressionou bastante a força da correnteza. Quer dizer, o rio estava raso. Dava para ir caminhando em uns 30% de sua extensão lateral. Mas mesmo assim, mesmo nesse ponto raso, era possível sentir a correnteza arrastando. Se soltasse o corpo, ia sem CVC para Alagoas. Como não queríamos essa viagem (não desse jeito), ficamos ali na boa curtindo o que as Gerais podiam nos oferecer de melhor.

Ana, naquela foto de turistão (praia do rio São Francisco, Januária)

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Escrito em 19 out. 2023

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