4.370 quilômetros de carro. Mas essa não foi uma viagem planejada de férias. Em razão dos concursos que Ana andou fazendo, ficamos aguardando algumas datas de provas para talvez repetir o que havíamos realizado em julho de 2023, quando aproveitamos uma prova em Curitiba para turistar na região e adjacências. Não rolou. A data de um concurso que ela prestava em Mato Grosso do Sul saiu de última hora e não coincidiu com o período das férias. Portanto, em uma semana ou menos do que isso, “planejamos” o que faríamos em nossas férias de 15 dias. Com preços de passagens aéreas nas alturas (com o perdão do trocadilho), cogitamos quatro possibilidades para ir de carro: Jalapão, Chapada Diamantina, Pantanal ou um rolê mais perto e familiar, na Serra da Canastra.
De cara, descartamos o Jalapão pela ausência de acessórios contra atolamentos ou um carro companheiro para ajudar nos perrengues do terreno ardiloso. Diamantina pareceu convidativa pelos vídeos que assistimos, mas seria um passeio de trilhas e de cachoeiras, algo que não desejávamos fazer, por ora, pelo cansaço. Vai vendo. A Serra da Canastra, com uma proposta (desta vez) mais pacata de um chalé para passar uns três dias, se tornou forte candidata. Mas, ao cabo, optamos pelo Pantanal por ser o mais diferentoso (pelo menos era o que achávamos) do que já conhecemos do Brasil.
Jovem gavião-caboclo repousa em uma placa da Transpantaneira (M) |
Daí, nesse semi-planejamento, percebemos que havia dois “Pantanais”: um sul e um norte. Como “o do sul” pode ser oportuno no futuro com moradia próxima (em caso de sucesso no concurso), optamos pelo “do norte”. Bom, já que passaríamos por Cuiabá, que tal aproveitar para ir à Chapada dos Guimarães? “Bora!” E se o trajeto pode passar perto do Parque Nacional das Emas, em Goiás, por que também não vamos lá conhecer? “Já tamo aqui mesmo”. E esse virou o lema dessa viagem. A ponto de, na hora de voltar para casa, aceitarmos a dica de um gerente de hotel em Poconé e rodar mais 250km, fora da nossa rota, para ir a Nobres. Um lugar que eu, particularmente, sequer tinha ouvido falar. “Já tamo aqui mesmo”. Foi assim que de “pouquinho” em pouquinho a quilometragem foi aumentando.
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A estrada, o sudoeste goiano e o agro
“Nasci em Goiás, lá em Jataí. Do meu grande estado, eu nunca saí”. Assim começa a letra da música de Silveira e Silveirinha, um sertanejo raiz que escutei uma porção de vezes pela rádio quando morava em Goiás. A letra cita várias cidades goianas, com uma pegada ufanista/regionalista. O título é indicativo: “Coração da pátria”. Outra dessas canções que citam cidades de Goiás é “Paixão goiana” de Ronaldo Viola e João Carvalho. O eu-lírico fala sobre a busca de uma “amada” no centro-oeste goiano. Por isso, a maioria das cidades mencionadas na letra é dessa subrregião do estado. Nessa viagem, pude finalmente conhecer algumas destas cidades que, como goiano, durante a minha infância, ouvia cantarem e falarem a respeito.
Com o Jimny lotado de malas, saímos às 6h30 de Patos de Minas em um domingo. Não sei se “o trem que vai para Araguari” chegou, Leonardo. Mas a gente parou lá. Em Araguari-MG (117 mil habitantes) abastecemos o carro e a nós mesmos. Gasolina para ele, pão de/com queijo para nós. Passamos por Tupaciguara-MG (25 mil hab.) e depois Itumbiara-GO (107 mil hab.), onde quase erramos o caminho. O trecho da BR-452 entre essas duas cidades foi um dos piores asfaltos que pegamos na viagem de ida, muito irregular e com alguns buracos. Depois, ainda na BR-452, o trecho de 200km entre Itumbiara e Rio Verde, possuía um intenso fluxo de caminhões e de motoristas imprudentes, tentando ultrapassagens arriscadas em locais de faixa contínua. Foi em algum lugar ao longo dessa rodovia que paramos para almoçar em um restaurante duvidoso de comida goiana. Sobrevivemos. Não chegamos a entrar em Rio Verde-GO (238 mil hab.), contudo, a cidade parecia mais estruturada do que as demais que havíamos passado.
Pouco a pouco, sobretudo depois de Itumbiara, fomos percebendo a força do agronegócio na região. Isso seria uma constante na viagem. É claro que desde o tempo do Ronca o agro manda no Goiás e no Mato Grosso. O desenvolvimento histórico dos dois estados no século XX tem a ver com isso, a expansão da fronteira agropecuária ocorrida especialmente a partir da Era Vargas. Não que no Triângulo Mineiro seja muito diferente. Mas para as bandas de lá o agro é mais bruto e, para visualizar isso, é preciso conferir presencialmente. Quase não se vê uma pequena propriedade. É impressionante e assustador. São imensos campos de plantação. Nessa época do ano, principalmente de milho e de algodão. Em muitos casos, essas propriedades, que parecem não ter fim, não abrigam uma única árvore. O relevo extremamente plano faz tudo parecer um deserto. É quente. Será por quê? E onde tem agronegócio, tem caminhão. Essa é a dupla sertaneja de mais sucesso das estradas que atravessamos.
De Rio Verde fomos a Jataí-GO (105 mil hab.), onde paramos para abastecer e cogitamos uma pousada para dormir (aproximava-se das 16h). Logo na entrada da cidade (à direita pela BR-158) avista-se um bonito parque (Parque Ecológico JK), o que nos deu uma ótima impressão sobre a infraestrutura e o lazer em JataHell. Como era domingo, o parque estava com uma boa quantidade de pessoas. Gente fazendo piquenique, passeando com o cachorro, correndo ou fazendo manobras na pista de patins e skate. Paramos em um posto de combustível perto do parque, onde uma das clientes, que lavava seu carro e regulava o som, nos recomendou dormirmos na cidade vizinha, Mineiros. Disse que lá era muito melhor do que Jataí, com mais opções de hospedagens. Um pouco desconfiados, a escutamos. Antes de sairmos, ainda presenciamos uma cena inusitada. Um “rolezinho” de bicicleta. De repente, brotaram como soja no planalto, dezenas de adolescentes em suas bicicletas levemente personalizadas, causando um pequeno caos no posto de combustíveis. Eram barulhentos como maritacas e receberam o repúdio veemente da frentista, por estarem atrapalhando a passagem dos carros. Sob protestos, acabaram cedendo e foram embora. Fomos também.
De Jataí a Mineiros-GO (70 mil hab.) foram apenas 108km e chegamos um pouco depois das 17h. Encontramos uma pousada no centro e nela ficamos. A cidade de Mineiros também nos deixou uma boa impressão. Pequena, limpa e aparentemente com boa infraestrutura. Mesmo no domingo, havia muitas opções de alimentação. A recepcionista do hotel falou com tom de orgulho que se quiséssemos poderíamos ir ao shopping. Ui, que chique! Posteriormente descobrimos que era um shopping de verdade. Não que isso seja grandes coisas, mas é que existem algumas cidades (cof cof!) nas quais os moradores dizem ter shopping, quando na realidade trata-se, no máximo, de uma galeria. Não somos fãs de comida de shopping e por isso procuramos algo próximo do hotel. Levamos nossos estômagos para uma lanchonete árabe com referências anacrônicas (Esfiha do Faraó), mas que entregou uma shawarma digna.
Jimneiros
No outro dia, ainda escuro, saímos de Mineiros e uns 90km adiante passávamos pela divisão entre os estados de Goiás e do Mato Grosso. Confesso que fiquei um pouco frustrado com o Rio Araguaia que sinaliza a linha divisória entre as cidades de Santa Rita do Araguaia-GO (5 mil hab.) e Alto Araguaia-MT (17 mil hab.). Longe da imagem de rio mítico, caudaloso e belo, poeticamente retratado nas canções de Marcelo Barra, ali o Araguaia é estreito e lembra um córrego de esgoto. Da divisa do estado até Rondonópolis, há algumas cidadezinhas pelo caminho. Vai aumentando o número de caminhões e de campos de monocultura. Um mar de algodão. O agronegócio só é interrompido pelo relevo acidentado. Quando a superfície plana dá um fôlego, aparecem serras e até mesmo chapadas. Antes de Pedra Preta-MT (17 mil hab.), passamos pela Serra da Petrovina. Uma serra muito bonita, com paredões que lembram os da Chapada dos Guimarães. A estrada fica sinuosa e lenta por uns dez minutos.
Rondonópolis-MT (260 mil hab.) não recebe a toa a fama de “terra dos caminhões”. A cidade me surpreendeu pelo tamanho e infraestrutura e também pela enorme quantidade de caminhões. Entramos nela para almoçar, porém, sem lugar adequado para estacionar, perdemos uns 20 minutos dentro da cidade e voltamos para a estrada com a barriga roncando. O almoço foi no propagandístico restaurante e pousada Chaleira Preta. Tinha preço de churrascaria bacana, mas a qualidade da comida estava bastante longe disso. Aliás, os preços não são amigáveis no Mato Grosso. Felizmente, de Rondonópolis a Cuiabá a BR-364 é duplicada. Menos mal. Porque são centenas de caminhões. Contudo, aproveitamos somente uns 70km desta rodovia porque antes de chegar a Jaciara-MT (25 mil hab.), viramos à direita, pegando a MT-344 com destino a Chapada. Apesar dos morros e das curvas, é uma rodovia de pouco trânsito e com asfalto conservado. Em sua maioria o cenário apresenta vegetação preservada e/ou pequenas propriedades. Algumas pequenas cidades pelo trajeto e, entre elas, a maior é Campo Verde-MT (31 mil hab.), onde avistamos um outdoor que revelava as predileções políticas das elites locais: defesa de voto impresso e auditável. Envelheceu mal.
Chapada dos Guimarães e o Mirante Morro dos Ventos
Chegamos ao município de Chapada dos Guimarães-MT (19 mil hab.) antes das 15h. Ganhamos uma hora a mais por causa do fuso horário do estado, -1h em relação a Goiás/Minas. Nos hospedamos na Pousada Luar, um espaço bem familiar com cara de casa de avó. Um banho, deixamos as malas e seguimos para o nosso primeiro passeio: o Mirante Morro dos Ventos, onde disseram ter um belo pôr do sol. O mirante se localiza a 3,5km da cidade e fica dentro da área de um condomínio de casas de luxo. Para acessar pelo portão do condomínio (e não há outro jeito), paga-se 50,00 reais por carro ou 20,00 reais por pessoa. Ana, em tom irônico, soltou que os ricos moram em um lugar onde os pobres precisam pagar somente para ver. O espaço onde fica o mirante pertence a um restaurante homônimo. À frente do restaurante, há um pátio com árvores, uma barraquinha de sorvetes e outra de um bar/lanchonete. O público frequentador é a classe média que parece ter saído de um comercial de fim do ano da Globo, bebendo sua long neck de Corona como se estivesse apreciando champagne em Mônaco. O preço de um picolé: 15,00 reais. Não compensa. Ficamos somente com a vista do mirante mesmo, que é incrível. Construíram dois parapeitos gradeados que se estendem ao fosso. É possível ficar sobre eles para contemplar o gigantesco paredão da Chapada que está à direita, além da imensa planície que se espraia até perder de vista. Araras-vermelhas completam a paisagem, sobrevoando os ares e brincando nas águas de uma ou duas cachoeiras que de tão ralas se perdem no vento antes de tocarem o solo. O pôr do sol é bonito, mas superestimado. Ir de manhã pode ser mais interessante porque a luz do sol vai refletir diretamente no paredão.
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Ana, de cabelo aos ventos, no Mirante Morro dos Ventos (M) |
Frio na Chapada! A chegada de uma frente fria nos surpreendeu. Quando acordamos no dia seguinte, ao abrirmos a janela, tínhamos sido transportados para a capital da Finlândia. Uma espessa neblina ou cerração (com “c” mesmo) cobria qualquer coisa a mais de dois metros de distância ao ar livre. Lá fora garoava e fazia uns 12 graus. Mais estranho ainda era pensar que, algumas horas antes, estávamos contemplando o sol se pôr. Como tudo na Chapada dependia de visibilidade, o jeito foi aguardar na pousada. Saímos somente na hora de almoçar. A charmosa praça central do município lembrava alguma cidade do sul do país. Nada a ver com o que esperávamos do Mato Grosso. Mas aos poucos a neblina foi se dissipando e o frio diminuindo.
Parque Nacional da Chapada dos Guimarães e o Véu da Noiva
Depois do almoço seguimos para o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães (11km da cidade sentido Cuiabá). Em razão do avançar das horas (já se aproximava das 15h e o parque fecharia às 16h), fomos impedidos pelo porteiro de acessar trilhas e outras cachoeiras senão a do Véu da Noiva. Tudo bem. Já valeria a pena. Após a caminhada por uma trilha bem marcada de 1km, chegamos no mirante da Cachoeira Véu da Noiva. Não dá para descer e vê-la de baixo, nem banhar em suas águas. Unicamente contemplação. Ela possui 86 metros de altura e jorra água por um dos paredões da Chapada. O ponto de vista que se tem dela é mais elevado do que a altura de sua queda e por isso a cachoeira parece maior. Seja como for, ela é bastante bonita e entrou no meu top 5 cachoeiras. Novamente, as araras-vermelhas dão um show à parte. Acostumadas com o público, fazem vôos sobre os turistas presentes no mirante. Depois, pousam nos paredões e bebem água da cachoeira.
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Cachoeira Véu da Noiva (M) |
Mirante Geodésico
Para aproveitar o tempo perdido, ficamos algum tempo no parque e seguimos 20km no sentido oposto para o Mirante Geodésico, outro lugar onde haviam recomendado o pôr do sol. Ele recebe esse nome, que parece de um senhor de idade, “Geodésico”, porque marcaria o ponto exato do meio da América do Sul. Particularmente, desconfio dessas marcações, mas tudo bem, a vista para a mesma planície interminável que vimos lá no Morro dos Ventos estava ali, sem os paredões. É aberto. Não se paga nada para entrar, porém também não tem estrutura nenhuma. Acredito que haja possibilidade de fazer trilhas porque tinham placas proibindo fazer trilhas. Ficamos uns bons minutos nesse lugar. Eu, mais embaixo, passarinhando e Ana, mais acima, passando frio. Um retrato do casal moderno?
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Eu na imensidão dos campos de altitude do Mirante Geodésico (A) |
Parêntesis sobre a cidade da Chapada dos Guimarães. Antes dessa viagem eu não sabia que ela existia. É ajeitadinha, pequena e tem de quase tudo. Mas é cara. A comida é mais cara do que o normal (cheguei a pagar 18,00 lulys em um copo de suco de laranja) e as roupas e as bugigangas, como lembrancinhas, são ainda mais caras. A hospedagem estava dentro dos preços normais. Pode ser que os preços caros tenham a ver com a presença mais alta de turistas europeus na região. Havia vários. Acho que eles aproveitam que estão ou vão para o Pantanal e acabam indo conhecer a Chapada, como nós mesmos fizemos. Fucking gringos. O almoço mais em conta ocorreu no Restaurante Popular (que eu achei aceitável, mas Ana detestou) e o café da manhã foi na Quitandas da Lê, ambiente simples e comida saborosa (que agradou aos dois). Ficamos em dias em que a cidade estava vazia e muitos estabelecimentos fechados. Imagino que no final de semana deve ser bem mais movimentada. Inclusive, perdemos um evento grande na cidade, relativo ao festival de inverno. Um dia antes da nossa chegada, rolaram shows de Detonautas e Raimundos, na faixa.
Araras-vermelhas sobrevoando os paredões da Chapada |
Parque Nacional da Chapada dos Guimarães e as outras cachoeiras
No dia seguinte, depois do café da manhã, colocamos as malas no carro e seguimos novamente para o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, determinados a fazer a trilha do circuito das cachoeiras. Para iniciar a trilha, é preciso preencher uma ficha e ouvir as instruções dos monitores do parque, funcionários do ICMBio. Ana considerou que eram muitos funcionários e carros para um parque relativamente pequeno. Alguns deles são rigorosos e até mesmo chatos, se preocupando desproporcionalmente com algumas coisas. Destoa bastante da administração de outros parques nacionais que visitei. Não sei se entra mais dinheiro na Chapada, se é pela alta presença de estrangeiros ou se, no passado, alguém fez uma merda muito grande dentro do parque. Só sei que são cricris. Enfim. A trilha tem 6km, contando ida e volta. O terreno em sua maior parte é tranquilo e o nível leve a moderado. Há alguns trechos íngremes e com pedras. Contudo, boa parte é bem marcada. Cansamos e sofremos um pouquinho pelo intenso calor que fazia no dia e pelo sedentarismo. Além disso, nossa proposta era não fazer trilha nesta viagem. Fizemos. “Já tamo aqui mesmo”. A maior das cachoeiras é a das Andorinhas, também é a mais distante. Lembra um pouco uma das cachoeiras do Parque Estadual do Pau Furado, em Uberlândia. Não chega a ser aquela formosura de cachoeira e suas águas são rasas nessa época do ano, mas dá para se banhar. Na continuidade do percurso, agora fazendo a volta, encontramos o que nomearam como “Piscinas Naturais”. Um poço e nada mais do que isso. Molhamos os pés na água gelada por uns 10 minutos e seguimos o passeio. No caminho fomos parando somente para observar as outras cachoeiras do circuito porque estávamos cansados: Degraus, Prainha e Pulo. Na Prainha tem areia em volta (claro) e dá para fazer um piquenique suave. A do Pulo é a mais bonita do circuito. E a Degraus tinha tanto gringo que mal deu para ver direito.
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Cachoeira das Andorinhas (A) |
Cuiabá
No trajeto para Poconé paramos em um shopping de Cuiabá-MT (682 mil hab.) para Ana comprar um óculos. Tomamos um sorvete muito bom, mas que não consegui aproveitar direito devido ao desarranjo gastrointestinal que me acometia desde a estrada. Primeira vez que fui a Cuiabá e saí com a impressão de que a cidade tem em sua estrutura urbana alguma coisa de Goiânia e Uberlândia. O paralelo com Goiânia deve ser pelas inúmeras rotatórias. Preciso ruminar melhor para descobrir porque a achei parecida com Uberlândia. Talvez seja porque se virar à direita em uma das avenidas principais, você já está dentro de uma área suburbana. É típico de cidades médias. Todavia, o trânsito pode ficar caótico como o de uma cidade grande, o que lembra mais Goiânia (mas nem chega aos pés do cabaré de cego que é o trânsito na capital do pequi radioativo).
Pantanal, Poconé e a Transpantaneira
Chegamos em Poconé-MT (32 mil hab.) à noite. No portal da cidade, os dizeres: “Poconé: capital do Pantanal e das tradições culturais”. Finalmente, estávamos em nosso principal destino. Nos hospedamos em um hotel dentro da cidade, o Hotel Canoas. Era razoável nas instalações e tinha um excelente café da manhã. O que nos motivou a ficar dentro da cidade e não em uma pousada no meio do Pantanalzão foram os preços exorbitantes cobrados pelas hospedagens. A diária do hotel era cinco ou até dez vezes mais barata do que a de hoteis e pousadas que se localizavam às margens da estrada Transpantaneira. Um absurdo! Preços inflacionados por causa de observadores da fauna e gringos. Fucking gringos again. Somente tardiamente descobrimos que havia um hotel do Sesc que cobrava preços justos. No entanto, ainda assim, estava lotado e seria necessário alugar com boa margem de antecedência. O que não se aplicava ao nosso caso.
Jacaré-do-pantanal no pântano (M) |
Não acordamos tão cedo e rumamos de carro para a Estrada Transpantaneira. De Poconé ao portal da Transpantaneira são cerca de 17km. Depois de um ou dois quilômetros é tudo terra. Nessa época do ano, seca, essa parte estava muito empoeirada. A pista é plana, reta e com poucas trepidações (costelas de vaca), por isso, os carros normalmente passam acelerados. O que é um problema grave para os animais atravessarem. Depois do portal avisando que “aqui começa o Pantanal”, aparecem os primeiros pântanos. A sinfonia de aves e de anfíbios preenche todo o ambiente à volta. Gaviões de três espécies são muito comuns: caramujeiro, caboclo e carijó. Os aracuãs, jacus, carões e coró-corós fazem muito barulho. A cavalaria (o cardeal do Pantanal) também colore a paisagem com seu branco, preto e vermelho. A poucos metros começam as pontes, os pântanos e as lagoas maiores. Na primeira lagoa, embaixo da ponte, observamos os primeiros jacarés. Na segunda lagoa, embaixo da próxima ponte, dezenas deles, talvez centenas. São grandes estátuas horizontais de obsidiana. Garças, jaçanãs e socós caçam e caminham ao lado dos jacarés, desafiando o vale da morte o tempo inteiro. Martins-pescadores espreitam de cima de um fio e dão rasantes nas águas, capturando seus sashimis ainda vivos. Gaviões-caramujeiros, aos montes, fazem chamados roucos e rasantes arrancando dos alagados crustáceos e gastrópodes. Nessas lagoas, o Pantanal entregou seu primeiro cartão de visitas. Cenário clássico. Belos pântanos de águas negras sob os aguapés ornamentados por dezenas de jacarés. Rodamos mais alguns quilômetros, parando, contemplando e tirando fotos de passarinhos. Fotografamos os primeiros tuiuiús e um colhereiro. Fomos até o quilômetro 30 da Transpantaneira, onde fica a Pousada das Araras (Araras Eco Lodge é o nome correto e se tiver curiosidade busque na Internet o preço da diária desse “humilde” lugar). Não vimos araras, mas muitas caturritas. Periquitos fofos, extremamente barulhentos e comuns no Pantanal. Do outro lado da estrada, uma ema pastava em paz. Depois disso, retornamos para almoçar em Poconé.
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Os primeiros alagados do Pantanal (M) |
No fim da tarde, após uma sesta prolongada, voltamos para a Transpantaneira. Rodamos menos desta vez, mas o suficiente para avistar um grande tuiuiú que abriu as asas para o retrato e de repente um cervo-do-pantanal bem distante. Paramos o carro na margem da pista e o bicho começou a se aproximar, parecendo estar interessado na cor laranja do carro. Curioso, foi se aproximando até ficar a uns 50 metros de distância, permitindo boas fotos. Depois se assustou e correu para longe.
Cervo-do-pantanal se aproximando (M) |
O sol descia rapidamente no horizonte e a gente correu para a lagoa mais bonita e mais biodiversa que encontramos, a da segunda ponte. Sempre considerei o pôr do sol um evento muito superestimado, celebrado sem propósito. Mas preciso confessar que o pôr do sol dessa lagoa entregou tudo e mais um pouco. Arrisco dizer que foi o cenário mais belo da viagem e o pôr do sol mais bonito da vida. À medida em que o sol caía, a jaçanã cantava, em tom dramático, um lamento bucólico; os sapos coaxavam e assistimos a um verdadeiro espetáculo nos ares, centenas de gaviões riscavam o alaranjado do céu, dando um adeus provisório a pântanos e arbustos em direção a árvores em meio a florestas onde provavelmente iriam empoleirar e dormir. Gaviões, pássaros que normalmente são territorialistas e individualistas, batiam as asas lado a lado uns com os outros, como se estivessem indo juntos, harmoniosamente com seus adversários, para uma grande confraternização das aves de rapina. Enquanto isso, mais próximo da vida terrestre, os mosquitos aumentavam intensamente suas atividades, picando, inclusive, por cima das roupas (se for ao Pantanal, leve repelente!). Ana e eu tivemos que nos refugiar dentro do carro, ainda contemplando o interminável voo dos gaviões. Quando o sol partiu, saímos do carro para tentar fotografar bacuraus. O que se mostrou uma tarefa hercúlea e irrealizável para reles mortais, especialmente porque os vampiros invertebrados não nos davam paz.
Pôr do sol no Pantanal (M) |
No dia seguinte decidimos acordar de madrugada para atravessar toda a Transpantaneira. O gerente da pousada disse que a madrugada é o momento ideal para ver animais. Ana odeia acordar tão cedo, mas estava determinada a ver uma onça. Já eu, queria mesmo atravessar os 146 quilômetros da estrada de terra entre Poconé e Porto Jofre para ver como era. Nos preparamos para isso. Na noite anterior, enchemos o tanque do carro e compramos comidas para o café da manhã e o almoço. Saímos às 4h30 do hotel e logo nos primeiros quilômetros avistamos um cachorro-do-mato. Já tínhamos visto um no dia anterior, mas dessa vez estávamos com lanterna em punho. Tímido, o bicho se afastou. Depois veríamos, ao longo da estrada, mais dois cachorros-do-mato vivos e um morto, provavelmente atropelado. Para lá do quilômetro 50, avistamos uma anta de tamanho médio. O sol já tinha nascido.
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Portal da Transpantaneira (M) |
A Transpantaneira não possui esse nome por acaso. Em suas margens, tanto à esquerda como à direita, há pântanos e alagados. Ela se situa em um ponto levemente mais alto e por isso permite o tráfego de veículos. Contudo, acredito que, durante a época das chuvas, a depender da intensidade, muitos trechos devem ficar alagados e algumas pontes submersas. Mas se engana quem pensa que as terras às margens da Transpantaneira são totalmente preservadas. É verdade que não vi monoculturas. O terreno pantanoso talvez impossibilite. No entanto, há bastante pecuária. Fazendas enormes com milhares de cabeças de gado. Na própria estrada, por duas vezes, tivemos que passar no meio de uma boiada tocada por vaqueiros. Nessa época de estiagem, boa parte dos 146km da Transpantaneira é mais seca, inclusive nas margens, o que foi uma surpresa para mim. Os poucos carros e caminhões que passam levantam muita poeira e assustam os animais silvestres. No terço final da estrada, aumenta o número de pontes. Não são 150 como alguns dizem, mas são muitas, sim. Contamos 88 pontes ao todo, considerando somente as que eram de asfalto, cimento ou de madeira. Não foram contados os terrenos mais elevados entre pântanos, porque não dava para saber se havia uma passagem de água por baixo. Algumas das dezenas de pontes de madeira são consideravelmente extensas. Paramos em algumas delas para tirar fotos dos animais. Nenhuma novidade, exceto em um dos pântanos. Avistei uma fêmea de pato-de-crista aparentemente liderando um bando de marrecas-caboclas. Uma cena inusitada. Nesse mesmo local, um tuiuiú resolveu atravessar a estrada pertinho de nós e ainda fez pose para a fotografia.
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Uma das pontes de madeira da estrada Transpantaneira (A) |
Depois de muito rodar e de parecer sem fim a estrada, chegamos a Porto Jofre. Não há nada em Porto Jofre. Quer dizer, tem um hotel para bacanas. Mas só isso. Não é nem sequer uma cidade. Não tem vila. São umas seis ou sete casas na beira do rio, um porto que parece improvisado e uma dezena de embarcações pequenas. Na beira do rio, ribeirinhos jogam caixeta enquanto aguardam aparecer um turista interessado em fazer um passeio de barco ou atravessar para o estado vizinho. Segundo a narrativa comum, quando o Mato Grosso construiu a Transpantaneira, o objetivo era fazer uma ponte para atravessar para o outro lado do Rio São Lourenço, onde já é Mato Grosso do Sul. Ocorre que os sul-matogrossenses não parecem ter aprovado a ideia, pois não cumpriram com sua parte do acordo (houve algum?) de construir a estrada do outro lado. Ficou assim. Sinceramente, acho que os animais agradecem. E a onça? Nada. Vimos no máximo uma cotia. Ana abordou uma moradora de Porto Jofre sobre a onça. A mulher respondeu que já viu a onça várias vezes por ali. Não seria rara a visita dela em Porto Jofre à noite. É de lá que parte um passeio pago para ver onça (Jaguar Tour). O trajeto corta a parte do rio que serpenteia pelo Parque Estadual Encontro das Águas. Promessa de onças na beira do rio. “Onças aqui!!!” Entretanto, essa brincadeira custava várias onças de papel. Entre 2 mil a 600 reais em média, a depender da quantidade de pessoas no grupo. Eu pulei fora. Saltei de banda. Ana ficou em dúvida, mas acabou não pagando para ver. Às vezes, se arrependia, às vezes, não. A volta de Porto Jofre a Poconé foi mais rápida e chegamos a tempo de pegar o almoço na churrascaria Pantaneira.
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Porto Jofre (M) |
Saímos à noite para explorar Poconé. Não durou muito porque não tinha muita coisa para ver e fazer. Tomamos um açaí na praça central, vimos um homem sofrendo de amor na porta da igreja matriz (sexta-feira, porta do carro aberta, sertanejo no talo, cerveja na mão, solitário, estava ali o pobre rapaz jogado às traças), uma choperia, um cantor de choperia estragando não só canções do sertanejo, mas também algumas da MPB, um foguetório que parecia de uma festa de 15 anos e algumas construções do que restou do patrimônio histórico de Poconé. A iluminação da cidade precisa de atualização, pois as luzes da praça parecem de uma boate mequetrefe.
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Praça e Igreja matriz de Poconé (M) |
Pousada Rio Claro
Para muitos, ir ao Pantanal e não andar de barco é como não ir ao Pantanal. Tenho dúvidas sobre isso, mas, sim, fomos passear de barco. Pagamos quase 300,00 reais/cada para um Day Use na Pousada Rio Claro, que fica no quilômetro 40 da Transpantaneira e possui um rio dentro de sua área. Nesse ingresso, estava incluso um passeio de barco, um almoço e a possibilidade de utilizarmos a estrutura externa da pousada, que contava com redes de descanso, deck para pescaria, piscina e ducha. Compensou. O passeio de barco dura 1h. O barqueiro vai passando por um belo rio de águas esverdeadas e mansas, mas que escondem piranhas e jacarés. A principal atração são os animais. Em um barranco, uma família de capivaras nos olha bovinamente. Quem é mesmo que observa quem? Em outro ponto, o barqueiro chama um tuiuiú semiadestrado que sobrevoa o barco e pousa na margem do rio esperando sua recompensa pelo show, um peixinho lançado. Ao lado do tuiuiú, um jovem carcará aguarda a oportunidade de uma sobra. Mais à frente, um casal de gavião-belo. Parecem semiadestrados também. Acompanham o barco e pousam em uma árvore próxima onde o barco para. Estão aguardando algo. O barqueiro lança um peixe na água. Em segundos, o gavião calibra seu GPS contra o vento para dar um rasante e atirar suas garras sobre o alimento. Um animal fantástico! Por fim, o personagem mais icônico. Um jacaré semiadestrado, de nome Romário. Com uma vara de pescar, o barqueiro pendura um peixe a meia altura do barco e espera Romário tentar pegar. Nadando com a cauda ele lança parte do seu corpo para fora da água e pula para abocanhar o peixe. Splash! Uma, duas, três vezes sem sucesso, porque o barqueiro vai tirando, como se estivesse tomando doce da boca de uma criança. Mas Romário, matador, não desiste. Por fim, pula e consegue. Gol de Romário. Aplausos do público presente.
Arara-azul na Pousada Rio Claro (M) |
Depois do almoço que prometeu muito e entregou muito pouco, gastamos mais algumas horas na pousada. Além dos periquitos-de-cabeça-preta, cavalarias, asas-de-telha e iraúnas abundantes nos comedouros da pousada, avistamos, finalmente, outro pássaro símbolo do Pantanal: a arara-azul. Belíssima. Outro destaque da avifauna da pousada (que, diga-se de passagem, reunia um enxame de passarinheiros) é um ninho de tuiuiú à frente da entrada. A mamãe tuiuiú estava lá, cuidando e alimentando seus filhotes, ao mesmo tempo, feios e fofos. Grunhiam estranhamente como um relinchar de um cavalo. O ninho era tão grande que foi possível que algumas caturritas fizessem ninhos dentro do ninho, isto é, por baixo daquele emaranhado de gravetos. A despeito das aves que observamos, achávamos que iríamos encontrar uma maior diversidade de espécies. Realmente, são muitos pássaros, em quantidade. Mas não demora para esgotar as espécies vistas, como no caso de gaviões. Antes da viagem, acreditávamos que encontraríamos araras em abundância no Pantanal. Não rolou. Talvez seja a questão de época do ano. O tempo seco é mais seguro para o trânsito. No entanto, o período chuvoso atrai com certeza mais pássaros.
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Jimny e o ninho de tuiuiú (A) |
Nobres
Fim da expedição no Pantanal e agora vamos seguir para casa, não é mesmo? Errado! Cristiano, o gerente do hotel em que ficamos em Poconé, recomendou um ponto turístico incontornável (segundo ele) no Mato Grosso: Nobres! O que tem? Belas cachoeiras, poços encantados, serras, vales e araras aos montes. Suelen, prima de Ana, também recomendou. “Nobres não é Bonito, é Lindo!” Outra dessas frases que ouvimos foi: “Nobres é o Bonito barato!” O dono de uma lojinha capenga de souvenirs em Poconé também indicou Nobres: “A região do Bom Jardim é incrível”. “Ué, vamos para esse lugar então!”. Ficava no nosso trajeto? Não. Teríamos que voltar, passando, inclusive, próximo de onde estávamos. Nobres se localiza ao norte da Chapada dos Guimarães. Teria sido mais fácil se tivéssemos planejado com antecedência. Mas “já que tamo aqui mesmo”. Lá vamos nós rodar 290km a partir do ponto onde estávamos na Transpantaneira. Tendo que peitar, inclusive, um trânsito chato por dentro de Cuiabá, no início da noite de um sábado.
Chegamos em Coqueiral, distrito de Nobres-MT (15 mil hab.), perto das 21h. Tivemos que pegar um pequeno trecho de estrada de terra na chegada e passei a considerar que havíamos entrado em uma enrascada. O vilarejo não tinha nada de bonito. Até chegar na pracinha, onde (ainda) existia vida humana, era tudo poeira, escuridéu e rusticidade. Pelo menos, a quitinete que alugamos pelo AirBnB era limpinha e arrumada. Fomos até a pracinha em frente da casa onde comemos um sanduíche feito por um adolescente de 15 anos de idade, que se revezava entre as funções de chapeiro, administrador da lanchonete (que levava seu nome: “Murilo Lanches”), motoboy e às vezes, do nada, saía para empinar a moto com os parças. “Tem certeza de que isso não é um sonho surrealista depois de tantos faróis na cara?” Nenhuma. Mesmo assim, fomos dormir.
A corrutela que ficamos também é chamada de Vila Roda D’Água e, segundo o dono da hospedagem, possui 1.200 habitantes. Acho que ele superfaturou esse número. Há outro vilarejo, igualmente distrito de Nobres, que também recebe turistas e é mais famoso: Vila Bom Jardim, embora o nome que apareça no Google Maps seja “Estivado”. Fomos conhecer. Tem a metade do número de habitantes de Coqueiral e carece de mais estrutura. Não fomos a Nobres, a cidade-sede, pois disseram que não haveria nada senão poluição e calcário. O turismo fica nas áreas rurais do município. A maioria dos atrativos da região envolve água. Cachoeira, poço, lagoa, corredeira, bóia cross, mergulho, balneário etc. Acordamos e marcamos dois passeios na agência de turismo, que ficava do lado da quitinete e era do mesmo dono. Tudo informatizado.
Reino Encantado
Nove quilômetros de carro na estrada de terra e adentramos a pousada Reino Encantado. O passeio? Flutuação em um rio de águas cristalinas. 140,00 reais por pessoa. Um instrutor gaúcho aparece fantasiado de mergulhador profissional e pede para segui-lo. Nos entrega uma máscara de mergulho com snorkel, um colete salva-vidas e uma sapatilha molhada. Pede para deixarmos tudo para trás. “Pedi um detox material e não tô sabendo?” Se quiser levar o celular, tem capa de proteção à água, alugada (50,00 reais) ou à venda (80,00 reais). Facadinha. Ok, fui convencido a deixar tudo para trás. Leva-nos por uma trilha curta e logo avistamos uma bela lagoa de águas rasas e cristalinas, com várias nascentes borbulhando da areia. Nota-se alguns peixes grandes que, segundo o instrutor, não foram introduzidos e tem origem no rio. Estranhei demais, porque ali estava a nascente e para mim não fazia sentido a presença de peixes daquele tamanho naquele local. Parece terem sido levados para lá como parte de um cenário instagramável. Ficamos uns 20 minutos dentro da lagoa para adaptação de uso da máscara com snorkel. Depois fazemos uma descida na superfície do rio, sendo levados por uma mansa correnteza. Não consegui me adaptar com snorkel e fui sem. O passeio completo dura cerca de 1h30. Os peixes maiores ficam somente na lagoa, mais para a frente encontramos peixes menores em pequena quantidade e cascudos no fundo do rio. O curso d’água é sempre estreito e raso. A recomendação é nunca pisar na areia do fundo do rio para não prejudicar a visibilidade das águas cristalinas. Justo. Porém dá uma canseira danada. Para-se para descansar algumas vezes em troncos colocados no trajeto. A água é fria, mas, tudo bem, faz calor.
Honestamente achei o Reino Encantado superdimensionado. Há outro atrativo que compete com ele: o Aquário Encantado. Pelas imagens, é parecido. Contudo, o Aquário é mais famoso, os donos ganharam muito dinheiro (segundo os moradores locais) e isso gerou certas farpas com parte da população (foi o que sentimos). Sobre o passeio, é uma experiência interessante para quem nunca fez algo do tipo. Na minha infância, fiz algo parecido diversas vezes quando ia para a Esplanada do Rio Quente. Hoje, infelizmente, a área não é a mesma. O turismo predatório venceu. A Pousada do Rio Quente passou a lançar as águas de algumas das suas piscinas no Rio Quente, chegando aos poços naturais da Esplanada. As águas também não são quentes como eram. A temperatura oscila entre o morno e o frio. Para piorar, condomínios localizados às margens do rio lançam esgoto na água. Triste fim.
Bóia Cross Duto do Quebó
Às 15h partimos para nossa próxima atividade de lazer, um passeio de bóia cross bastante recomendado pelos moradores. A 15km de estrada de terra de Coqueiral chegamos a um local rústico, administrado pela própria família, totalmente diferente do lugar frufruzento que é a Pousada Reino Encantado. Aluguel de capinha de celular: 10,00 reais. Agora, sim, estão falando meu idioma. Sem qualquer tipo de trololó, pedem para pegarmos um capacete, uma sapatilha e uma bóia bem grandona. Temos que carregar a bóia, descer por alguns degraus e chegar em um rio, o Rio Quebó Grande. Que de grande não tem nada. É raso, mas tem pedras e corredeiras de leves a moderadas. Quem comanda a atividade são duas pessoas, um pai e sua filha adolescente. Em dez segundos eles explicam o que é para fazer: “entrem na bóia e acompanhem a mocinha ali da frente”. Simples assim. Colete salva-vidas? Que nada. E lá fomos nós, descendo rio abaixo, com mais uma ou duas famílias em comboio. A correnteza é mais forte e a bóia produz menos resistência à água do que nosso corpo, por óbvio, e isso faz com que o passeio seja mais veloz e divertido do que a flutuação. Mas controlar a bóia não é fácil. Por vezes, você gira feito um pião, por vezes se choca contra as pessoas e as rochas ao lado. Dei uma cabeçada na pedra e aí compreendi porque esse rolê, extremamente raiz, exigia uso de capacete. Fiquei ileso. A cereja do bolo é quando passamos dentro de uma caverna. Sim, de bóia, sobre a água e dentro da caverna. Uma caverna grande, coalhada de morcegos. A monitora leva consigo um refletor para iluminar a caverna. Os morcegos ficam alvoroçados com a luz artificial e saem voando para tudo quanto é lado.
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Dentro da caverna no duto do Rio Quebó (M) |
Novamente faço um paralelo com o Rio Quente. Quem já foi ao Hot Park da Pousada do Rio Quente provavelmente fez o passeio de bóia no Lazy River. A dinâmica é a mesma. Em cima de uma bóia, você é levado pelas correntezas de um curso d’água. Claro, no Hot Park, todo o circuito é artificial, construído pelo ser humano. Sem falar que as corredeiras do Quebó são mais velozes e cheias de desafios. Ademais, a caverna e os morcegos tornam o passeio incomparável. É muito mais interessante. São 40 minutos de percurso e custa 135,00 reais. Vale a pena!
Ao lado do passeio de bóia, tem uma placa indicando a Ponte de Pedra. O acesso é aberto e fomos lá conferir. O mesmo rio que segue para o passeio de bóia passa por ali. As águas são mais esverdeadas, porém, a ponte parece ter caído e o local abandonado. É o tipo de lugar propício para encontrar serpentes peçonhentas e cortar a perna nas pedras. Dois minutos foi o suficiente para abandonarmos esse rolê e seguirmos para Coqueiral. Como à noite não havia nada para fazer, fomos tentar, novamente, fotografar bacuraus no escuro. Entramos em uma estrada erma e ligamos o gravador com o som das espécies de bacuraus. Responderam. Até mesmo um urutau respondeu. No entanto, mesmo sem o incômodo dos mosquitos devoradores de almas do Pantanal, não tivemos sucesso algum.
De volta a Mineiros
Gastamos um dia inteiro de estrada para chegar em Mineiros. De Coqueiral fomos até a Chapada dos Guimarães e de lá até Mineiros. 677 quilômetros exaustivos em razão do cansaço dos dias corridos e de mais uma disenteria que se tornou uma desagradável e assídua companheira de viagem. O que eu comi ou bebi que me fez mal? Não tenho a menor ideia. Meu intestino é intempestivo e tem uma lógica própria que ainda não desvendei totalmente. À noite em Mineiros, brocados de fome, encontramos um restaurante que servia uma parmegiana apetitosa, o Bar do Mário. De barriga cheia, partimos para o encontro de Morfeu. No dia seguinte, tínhamos planos de ir ao parque.
Parque Nacional das Emas e dos lobos
Último ponto do nosso roteiro turístico. Uma das portarias (o portão Jacuba) do Parque Nacional das Emas fica localizado a 80km de Mineiros. A gente não saiu tão cedo da cidade e planejamos mal e porcamente essa visita. O tanque de gasolina do carro não estava cheio o suficiente e só percebemos isso no meio do caminho. Era arriscado seguir porque não tem nenhuma cidade, nem posto de gasolina próximo. Chegar, a gente ia chegar. Mas para voltar, talvez ficássemos no meio do caminho. Faltando uns 25km até a portaria, decidimos que era melhor voltar para Mineiros e talvez abortar o passeio. Voltamos a Mineiros, abastecemos o carro, mas pensamos “melhor”. “Já tamo aqui mesmo”. “Bora nesse troço! Vai saber quando ou se voltaremos!”. Compramos umas frutas e uns ultraprocessados para comer por lá mesmo e partimos. Percebemos que realmente o combustível nos deixaria à deriva. Fica a dica para, você, leitor(a), não cometer a mesma burrice.
Na entrada do portão Jacuba (ou norte), há esculturas de seriemas, tatu, coruja, lobo-guará, tamanduá, veado e, claro, emas. Depois do portal há duas casas e uma tenda. Fomos recebidos pelo sr. Selmo que nos explicou o funcionamento do parque. Há passeios que só podem ser feitos com guias contratados previamente, como, por exemplo, atravessar o parque de carro por uma estrada que o corta pelo meio. O mesmo caso se aplica aos passeios de bóia cross e de bote pelas corredeiras do Rio Formoso. No entanto, gostaríamos somente de conhecer o parque. Nesse sentido, ele indicou os passeios autoguiados. Uma trilha pela mata mais fechada, com árvores altas, e que são extensão da mata ciliar de um rio que divide a área do parque. Fizemos a caminhada e foi onde Ana adquiriu sem prestações dezenas de carrapatos. Alguns foram transportados para Minas Gerais. Também trouxe uns dois ou três comigo. Apesar do horário desfavorável (11h30), observamos algumas espécies de pássaros na trilha: udu-de-coroa-azul, soldadinho e maria-ferrugem. E ouvimos vários barulhos estranhos. Um deles, Ana achou ter vindo de uma onça-parda. Já pensou? Improvável. Depois dessa caminhada de algumas centenas de metros, fizemos a volta de carro pela Trilha da Jacuba (14km) contemplando a vegetação preservada do cerrado. É impossível não perceber o contraste gritante com a área de fora do parque, tomada pelo agronegócio e, naquele momento, sem planta alguma no solo. Outra nota triste foram as duas antas atropeladas na rodovia que corta as lavouras. Uma delas era uma bitela.
Seguimos para a outra entrada do parque: o portão Bandeira (ou sul). Localiza-se entre as áreas dos municípios de Chapadão do Céu-GO (10 mil hab.) e de Costa Rica-MS (26 mil hab.). Está a 81km da outra portaria, sendo uns 30km de estrada de terra, passando por dentro de plantações. Eis que acessamos o quarto estado da viagem, Mato Grosso do Sul. Vimos um posto de combustível e corremos para abastecer com medo de não encontrar outro. Pagamos uns 7,60 reais no litro da gasolina. São reis ali. Vendendo água no deserto.
No caminho avistamos muitas emas. As donas do parque. Uma delas parecia querer competir com o Jimny, correndo mais do que o carro. A entrada pelo portão Bandeira é mais modesta, sem esculturas, contudo, há mais instalações. Fomos recebidos por uma funcionária do ICMBio, cujo nome era Daiane (se não me falha a memória). Ela nos explicou sobre o parque e repetiu algumas coisas que o sr. Selmo já havia falado. De repente, olho à frente da cancela e vejo dois lobos-guarás. Num primeiro momento, pensei que eles estivessem ali passando por algum tipo de tratamento. Porém, não era nada disso. Eram simplesmente visitantes raros naquele local. Não conseguimos ver a onça-pintada no Pantanal, mas o lobo-guará do cerrado, esse deu as caras. Tentamos ficar quietos e em silêncio. Um dos indivíduos, bastante curioso, foi se aproximando até ficar pertinho, a uns 7 metros de distância da gente. Eu já tinha visto lobo-guará solto quando era criança e recentemente avistamos um correndo na Serra da Canastra, mas estava à noite, escuro. Desta vez, foi diferente. O bicho estava muuuuito perto. Deu para notar bem suas pernas compridas, sua pelagem cheia, como se fosse um cachorrão. E o lobo-guará é isso, um cachorro grande, de pernas compridas e desajeitado. Enquanto um dos indivíduos nos observava de perto, um outro comia frutas no fundo do quintal.
Lobo-guará na entrada do Parque Nacional das Emas (M) |
Os lobos ficaram tanto tempo à nossa volta que nos acostumamos com eles e fomos fazer outra atividade. Uma volta de carro onde é permitido ir sem guia para observar a vegetação e a fauna. Avistamos os trocentos cupinzeiros que o parque possui. Nesses cupinzeiros, em determinada época do ano (quando começam as chuvas), acontece o fenômeno da bioluminescência: as larvas de vagalumes emitem luz para atrair suas presas, principalmente cupins alados. É um verdadeiro espetáculo noturno e o melhor lugar para observá-lo é no parque. Continuamos a volta, que possuía 24km. Entretanto, a monitora se confundiu, dizendo ser 14km e isso fez com que achássemos que estávamos perdidos. Meio sem querer chegamos à sede do parque. Umas seis casinhas coloridas de verde, onde dormem e trabalham funcionários do parque e pesquisadores. Ao fundo das casas, dois caminhos curtos levam ao rio. Trata-se do Rio Formoso. O nome é bastante adequado. Uma formosura, diria o caipira. Não é um rio extenso, mas possui corredeiras fortes e uma cor verde vívida, com bastante presença de plantas aquáticas. Pela estradinha de terra, à direita da sede, chega-se a uma longa ponte de madeira, onde é vetado atravessar sem guia. O rio corre rápido embaixo da ponte. Outro caminho de madeira, à direita da ponte, leva a outros dois pontos do rio, de onde se observa rochas no meio do rio e algumas pequeníssimas quedas d’água, tornando as corredeiras mais fortes. É sobre elas que ocorre a atividade de bóia cross. Deve ser emocionante. Mas vai ficar para uma próxima. Na saída do parque, encontramos um dos guias, Cabral. Um senhorzinho figuraça, morador e um dos idealizadores de Chapadão do Céu. Disse para voltarmos em outro momento, com mais tempo, inclusive para ver a bioluminescência. Voltaremos!
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Ponte sobre o Rio Formoso (A) |
Nossa vida é andar por esse país
De novo na estrada. Já escurecendo pegamos o caminho da roça. Do parque a Chapadão do Céu a estrada é de terra, depois vira tudo asfalto e caminhões. A 50km adiante, paramos em Chapadão do Sul-MS (30 mil hab.) para nos alimentar e colher informações sobre as rodovias que nunca havíamos passado. Decidimos rodar somente mais 100km e dormir em Cassilândia-MS (20 mil hab.). A estrada à noite fica mais cansativa e pesada, sobretudo nesses trechos cheios de caminhões. No dia seguinte, escolhemos o trajeto passando por Caçu-GO (13 mil hab.), o que se mostrou acertado porque, com exceção de um trecho irregular de uns 90km, o asfalto tinha boa qualidade. Só paramos em Uberlândia-MG (713 mil hab.) para fazer um lanche e seguimos para Patos de Minas. Ironicamente, o trecho mais complicado entre estradas e rodovias que enfrentamos foram esses 210km finais na BR-365. Em razão da peregrinação de romeiros devotos de N. Senhora da Abadia, o acostamento e/ou a terceira faixa foram bloqueados provisoriamente. Isso tornou impossível a ultrapassagem de caminhões na maior parte das vezes. Portanto, tivemos que ter bastante paciência e finalmente concluir os 4.370 quilômetros que registram somente uma parte das aventuras e experiências dessa expedição que realizamos. Obrigado por nos acompanhar nessa viagem. Até a próxima!
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PS.1: Este ano o blog de viagens completa 10 anos. Dez anos escrevendo sobre as viagens que fiz! Estou pensando em revisar os textos e publicá-los em formato de livro. Será que vale a pena?
PS.2: As fotos no corpo do texto são minhas (M) e da Ana (A). Se quiser assistir a vídeos dessa viagem, acesse aqui (é só para os íntimos).